Tōkyō Monogatari, marcado pela história

Por Davi Meireles

Tōkyō Monogatari (1953) é uma das obras mais marcantes de Yasujiro Ozu, na qual ele imprime sua visão sobre a moralidade sentimental humana que se manifesta em uma época sombria e desolada no Japão. As estruturas sociais e sentimentais retratadas no filme são reflexos dos eventos pós II Guerra Mundial; mais especificamente, a crise existencial representada remete à sociedade japonesa após dois bombardeamentos nucleares e inúmeras invasões e ataques opressivos após a queda de Berlim. Nesse contexto, Ozu buscou explorar um cenário marcado por tanto sofrimento. As principais perguntas ensejadas pela obra são: Como conviver em sofrimento? Quais os fundamentos do amor?

“Shōwa” é o nome dado a um período histórico do Japão, entre 1926 e 1989, período no qual Yasujiro Ozu, nascido em 1903, formulou suas principais ideias e referências sobre seu próprio país. O período Shōwa foi conturbado em alguns sentidos: instaurou-se um nacionalismo geral criador de um Estado militarizado; ainda, em 1937 eclode a Segunda Guerra Sino-Japonesa, seguida do confronto Mundial que legou ao João, integrante do Eixo, os dois únicos ataques nucleares na história da humanidade. Ozu participou desses confrontos, e muito do seu trabalho surge dessas experiências. A sua experiência na Segunda Guerra Sino-Japonesa o levou a escrever um extenso diário que o inspirou a criar alguns guiões cinematográficos. Durante a II Grande Guerra, Ozu foi convocado a fazer um filme de propaganda na Birmânia, mas decidiu se enveredar por outros rumos: foi para Singapura analisar filmes estadunidenses.

Por lá, aprofundou-se nos estudos de cinema. Ozu passou a buscar um tom específico para seus filmes, que eram considerados representativos da cultura japonesa pelos próprios críticos da época. Em época de um nacionalismo pulsante, os filmes de Ozu exprimiam um certo “Japanese Flavor”, algo muito mais significativo naquela sociedade do que o “American way” dos Estados Unidos, ou o “French touch” da Europa. A verdade é que Ozu tentou articular os modos de vida do Japão à própria linguagem cinematográfica: sua câmera, por exemplo, ficava geralmente posicionada abaixo dos personagens, em plongée, reproduzindo pontos de vista de alguém sentado em um tatami.


O filme conta a história de um casal de idosos que vai à Tóquio visitar dois de seus filhos, com os quais são se encontram há muito tempo. Shūkichi e Tomi vivem em Onomichi com sua filha mais nova, Kyōko. Além dela, tiveram outros quatro filhos: além dos dois que residem em Tóquio, há um terceiro que vive em uma cidade entre a capital japonesa e Onomichi, e um quarto que morreu lutando na II Guerra Mundial.

É fácil compreender o porquê Tōkyō Monogatari é visto como um dos maiores clássicos de Ozu. A visão delicada do diretor é essencial para a obra. O enquadramento é detalhadamente pensado para favorecer a profundidade de campo. Os personagens têm uma coreografia orgânica em cena, perpassando por cada camada da imagem. O cenário é minuciosamente arquitetado para favorecer enquadramentos. Todos esses elementos são estética e narrativamente potencializados em tomadas longas, um recurso que garante uma grande imersão.

A imagem é tão rica que quase conta sua história sozinha. Raramente um diálogo exprime tantos significados: as falas não passam de comentários ordinários e corriqueiros do dia-a-dia, O principal elemento narrativa da história são as situações contextualizadas em cena, que exprimem, com surpreendente clareza, a subjetividade das personagens. Conseguimos, assim, nos conectar com as suas profundezas.

A escolha pela subjetividade condiz com o estado da sociedade japonesa da época. Após sofrerem uma opressão massiva no desfecho da II Guerra, buscar-se-ia lidar com os traumas, com o sofrimento reprimido: questões presentes, por exemplo, na construção de Noriko, personagem chave da história, que está sempre com um sorriso no rosto, apesar de suas aflições.

Ozu nos convida a abraçar a subjetividade das suas personagens, sensibilizando-nos para que estejamos atentos aos mais simples detalhes. E é a partir dessa aproximação que o diretor discorre sobre a dor de não se ter uma das formas mais fundamentais do amor correspondida. Tōkyō Monogatari é um filme devastador para quem olha de perto.

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