Quase Lucrécia: A Cisão dos Corpos de Martel

De difícil definição, o cinema de Lucrécia Martel é tão singular que não se encaixa em nenhum gênero específico. Em seus filmes, podemos perceber articulações sutis de diferentes elementos cinematográficos. Para alguns, o cinema de Martel poderia ser chamado de “cinema de suspensão”, classificação que vem sendo utilizada para descrever obras contemporâneas que levam o espectador a ter uma percepção distintiva da subjetividade sensorial e temporal nas narrativas fílmicas.

A   forma como a diretora argentina joga com o olhar do público é tão inusitada que chega a provocar certos desconfortos e ansiedades: cria-se expectativas que nunca serão realmente supridas. Ela aposta, por exemplo na aproximação plástica de corpos, engendrando intimidades físicas provocadoras que chegam a ser desconcertante. É o que acontece em cenas de filmes como O Pântano (2001), no qual a personagem Jose (Juan Cruz Bordeu) praticamente entra no chuveiro com Vero, interpretada (Leonora Balcarce), que talvez seja sua irmã. O mesmo incômodo está presente em A Menina Santa (2005): a mãe e o tio da protagonista, Amália (María Alché), dividem a mesma cama desnecessariamente. Esses estranhamentos são acentuados por aquilo que não é mostrado. Não por acaso, as personagens de Martel sempre aparecem fragmentados, cortados pelos ângulos da câmera, ora fora de plano, ora interditados por um algum objeto cênico, às vezes próximos demais para que consigamos vê-los por inteiro.

Em O Pântano, especificamente, podemos sentir, ainda, uma languidez inerente aos corpos. A decadência da vida daquelas pessoas é marcada na carne. A começar por Mecha (Graciela Borges), que em determinado momento do filme cai e se machuca à beira da piscina. Testemunhamos, em todos os presentes, um torpor tão forte, que, num primeiro momento, não percebemos a gravidade dos ferimentos da protagonista. Ninguém se dispõem a ajudá-la e ela mesma se deixa estar jogada ao chão, até que suas filhas a socorrem. Os cortes sofridos por Mecha são “bem no decote”, como ela mesma se queixa ao longo do filme, uma parte do corpo que, culturalmente, se considera sensual e que remete à afetividade (próxima do coração). Descobrimos, depois, que o casamento de Mecha não vai nada bem. A sua reação diante da traição do marido não é muito diferente daquela que teve ao se esborrachar da piscina. Ela trata todos os traumas com certa indiferença; falta-lhe disposição para fazer algo a respeito, embora sempre expresse reclamações. 

Outros personagens  de O Pântano também têm seus corpos marcados, quebrados e violentados de uma maneira brutal. As mazelas envolvem a formação de um dente errado, a perda de um olho, um o nariz quebrado e até a falta de higiene. Presenciamos a decadência e observamos esses sujeitos se afundarem lentamente em um pântano da própria vida.

Entretanto, a diretora também trata dos desejos e da sensualidade desses corpos marcados. A languidez anteriormente mencionada também evidencia a lascívia de corpos que estão constantemente desnudos, se tocando, se encontrando. Jose e Isabel (Andréa López) são duas personagens que sintetizam essa abordagem. Jose, com frequência, é mostrado seminu, participando de brincadeiras que levam ao contato físico e à proximidade. Já sexualidade de Isabel aparece de forma mais tímida, muito mais imposta pelo desejo dos outros. Talvez muito disso venha da sua condição de “subalternidade” em relação aos outros personagens: além de mulher, é empregada e indígena. Assim, ela desperta o desejo, sem realmente protagonizá-lo.

Em A Menina Santa, a sensualidade corporal toma uma outra dimensão, mais ambígua. Há oposições constantes entre o divino e o carnal, a inocência e a malícia, a santidade e a perversão, o toque e o não toque. A cena em que Amália é assediada pelo Dr. Jano (Caros Belloso) sumariza a dubiedade do filme. Um músico toca um teremim, instrumento eletrônico controlado sem qualquer tipo de contato físico. Dr. Jano, num gesto espelhado, se aproxima de Amália sem exatamente tocá-la, deixando-a confusa. Aquilo fora um sinal divino, ou uma tentação pecaminosa? Amália se sente atraída ou perturbada? A ambivalência das intencionalidades está fortemente presente, ainda que a diretora não faça juízo de valor durante sua narrativa. Amália fora assediada por um homem mais velho e casado e se vê obrigada a lidar com essa investida imprópria ao mesmo tempo em que tenta ordenar seus próprios sentimentos. 

Outra personagem que também parece se perder entre ambivalências do erotismo e do religioso é Josefina (Julieta Zylberberg), a melhor amiga de Amália e sua confidente. Josefina, na verdade, se vê envolvida com rumores da vida privada de uma professora, sobre a qual comenta imbuída tanto de uma malicia julgadora, quanto de uma volúpia de um desejo proibido, que acaba falando mais forte. Em certo momento, Josefina acaba se envolvendo com Amália, com quem compartilha uma proximidade física muito grande. Elas até se beijam. Josefina também mantém relações sexuais com um rapaz que pode ou não pode ser seu primo. Sua culpa transparece na própria consumação dos seus desejos carnais: os dois evitam se olhar e se falar durante o sexo. 

Em outro filme de Martel, Mulher Sem Cabeça (2008), essas mesmas questões retornam. Aqui, porém, o que fica mais evidente não é a relação de um corpo com outro, mas os reflexionamentos individuais sobre a própria materialidade carnal. O que mais pesa nesta obra é a cisão entre o corpo e mente permeada por questões do espaço, do tempo e dos laços afetivos. A obsessão crescente em relação incerteza de Veronica (María Onetto) diante da vítima de um atropelamento provocado por ela no início filme (ela não sabe se se trata de o uma pessoa ou um cachorro) acaba engendrando um mecanismo de fuga de qualquer responsabilidade. Quanto mais Veronica se sente oprimida pelo peso de seu suposto crime, mais ela se distancia – inclusive, fisicamente – da realidade que poderia trazer à tona sua culpabilidade. Martel opta por enquadramentos que ocultam a cabeça Veronica, ou então o contrário: mostra apenas uma cabeça separada do restante do corpo. Imagens desfocadas e espaços que se esvanecem ao redor da protagonista também evidenciam seus conflitos. 

Em suma, nos filmes de Martel os corpos fissurados parecem traduzir aquilo que não é realmente concretizado, a dúvida que nunca é sanada, o desejo sempre reprimido. O que não é explicitado é o que realmente mais importa.

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