Mulher, uma perspectiva

Por Letícia Santos Góis

Helena Solberg com o grupo Women’s Film Projectcriado — Foto: Helena Solberg/Arquivo pessoal

O filme A entrevista (1966), de Helena Solberg, funciona como uma lupa para a condição feminina de seu tempo, evidenciando, não obstante, um  pensamento conservador ainda presente na atualidade. Na obra, seleciona-se depoimentos  de mulheres sobre as supostas características da feminilidade nos anos 1960, de forma a tensionar papéis sociais e identidades fixas. A narrativa, porém, acaba se engessando em uma perspectiva unívoca em relação  ao feminino, que, podemos afirmar, não condiz com a atualidade em que novas possibilidades do “ser mulher” são vivenciadas de forma mais plena.

O documentário de Helena Solberg pode ser incômodo, por exemplo, aos olhos políticos de uma espectadora orientada pelo pensamento decolonial. Reunir várias vozes, de várias mulheres, em uma narração em off que se sobrepõe a imagens encenadas por uma única personagem é um gesto simbólico que revela um determinismo agressivo. Apesar das falas se diferenciarem por vezes, o fato de se propor um único rosto e a encenação de uma única rotina, de um modo de vida específico, reduz  os depoimentos a um panorama rígido. Os pensamentos que se destacam como progressistas   para a época acabam apequenados. Insinua-se que tais perspectivas não fariam diferença: a história da mulher sempre seria a mesma. A mulher real seria a mulher da casa, a mulher dos filhos, a mulher do marido, do casamento, do sistema monogâmico, a mulher que não precisa se ocupar de muito, a mulher bonita, a mulher rasa.

O papel da mulher desempenhado calmamente na tela torna-se, de fato, sufocante. O recurso cinematográfico do som simula a experiência psicológica do fluxo de pensamentos, de falas não ditas, de sentimentos que se maturam apenas dentro dessa mulher que não vemos falar, que não é escutada na sociedade e que se acostumou a essa condição, dando continuidade a esse lugar unidimensional,  de única face.

Ao final, observa-se o depoimento sincrônico de Glória Solberg, que encena a figura feminina no curta. Ela fala sobre o esclarecimento de suas ambiguidades e incoerências, bem como a narrativa propõe através das vozes plurais que ouvimos. Logo depois,  inicia-se uma sequência documental de registros da Marcha da família com Deus pela Liberdade, movimento político anticomunista e conservador que teve grande apoio de mulheres em 1964. O filme termina, na verdade, confirmando um caráter denunciador em relação ao determinismo da figura da mulher, embora ainda relacione, de maneira geral, o conjunto das falas e encenações ao conservadorismo. Desse modo, o filme explicita o terreno movediço da busca pela manutenção do sistema patriarcal. O recado que fica é que o pensamento conservador prevaleceu, inclusive, no desejo e na luta das próprias mulheres pela continuidade desse lugar encaixotado.

O curta é a ilustração desse papel já mencionado, mas é também a posição de uma cineasta mulher que trabalhou no contexto da produção cinematográfica em uma época extremamente machista e de ambientes majoritariamente masculinos. Encontramos nesse panorama inexorável um mecanismo para que as falas dessas mulheres reais pudessem ser ouvidas. O filme deixa claro em sua estrutura uma certa ambiguidade e contradição. Aquilo que foi atribuído à figura da mulher, aquilo que se espera dela e aquilo que se espera do filme não necessariamente se cumprem. A mulher se revela única. Helena Solberg se revela protagonista com seu primeiro filme. A única cineasta mulher do cinema novista.

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