LAMA: O crime da Vale no Brasil, de Carlos Pronzato e Richardson Pontone

POR: Náthaly Escobar

Quantas toneladas exportamos
de ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
sem berro?
( Drummond, 1984)

A presente resenha acadêmica pretende analisar o documentário “LAMA: O crime Vale no Brasil”, dirigido, independentemente, por Richardson Nicola Pontone, professor, fotógrafo e documentarista, e Carlos Pronzato, cineasta das lutas sociais da América Latina, documentarista, poeta e escritor. O longa-metragem de 2019 foi filmado pouco tempo depois da tragédia, em apenas 15 dias, e contém mais de 50 entrevistas e depoimentos, desde moradores e ambientalistas até profissionais da saúde e bombeiros voluntários. A produção de 80 minutos é uma contribuição significativa para a memória do país, propondo uma visão crítica e humana sobre o crime que se sucedeu pelas mãos da mineradora Vale S.A.

Na sexta-feira do dia 25 de janeiro de 2019, a barragem do Córrego do Feijão, pertencente à Vale, rompeu em  Brumadinho, Minas Gerais.

O tema sobre o qual os documentaristas se debruçam é este, o crime da Vale. O material perscrutado configura-se de aspectos integrais em sua composição, uma densa pesquisa e um altíssimo grau de informatividade, estruturando estratégias visuais que solidificam a indignação e permitem ao enunciatário uma consciência crítica e humana sobre o tema. O enunciador produz o documentário como uma denúncia e um retrato social a partir dos depoimentos e entrevistas que são intercalados à trilha sonora comovente, essa que perpassa partes de todo o corpo da obra, acompanhando imagens e vídeos do desastre, objetivando contribuir para a exposição da revolta da população que ali residia.

O documentário posiciona-se como uma crítica à empresa mineradora, instiga o debate, expõe, tensiona e desmonta significados dominantes, assim, a crítica, “como um ato de tornar comum, é necessariamente política” (Gusman, 2023). O filme compartilha experiências que são selecionadas para serem dignas de tornarem-se comuns a todos, a atitude crítica diante de algo modifica e constrói, assim, a obra cinematográfica desafia toda a calamidade que a originou.

Portanto, parafraseando Leal (2022), não há linguagem que seja imparcial, não se conta nenhuma história de um “lugar vazio”, desenraizado de realidades sociais e visões de mundo. Posto isso, ao tratar da proposta do documentário, sua atuação como objeto de denúncia é polifônica, pressupondo a diversidade de visões de mundo ao incorporar vozes da região através dos diversos depoimentos, considerando que não estão ali apenas para confirmar os modos como são apreendidos pelo olhar da mídia, e sim ampliar a história de cada um deles, a fim de se posicionar e evitar silenciamentos. “Ouvimos pessoas que a imprensa não ouve: moradores, atingidos, lideranças ambientais e ex-funcionários da Vale, falando como a empresa operava na região” fala Pontone em entrevista ao site de notícias Brasil de Fato. Segundo o diretor, que também é coordenador do curso de comunicação social da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), o intuito da obra é “amplificar as vozes das pessoas que foram atingidas e, principalmente, deixar em evidência que esse desastre já estava em curso”.

Sob a ótica apresentada, o filme indica, a partir dos depoimentos dos moradores, o fluxo do desastre. Além disso, fica nítido que o “processo de fuga” que foi viabilizado pela Vale não era eficaz. Segundo um dos moradores da região, Antônio Gonçalves (17’08’’), a empresa anunciou para a população o aviso de “Juntar os documentos e colocar na pasta” que “quando a sirene tocar e a barragem estiver em perigo era para correr e não esquecer os documentos”. Conforme outra moradora, Carmen Barbosa (18’16’’), “A sirene tinha que dar sinal e não deu”. Assim, é claro o entendimento de que o treinamento de sirenes não proporcionou sequer seguridade para a comunidade. Houve um gigantesco e lamentável desmazelo por parte da mineradora. “Todo mundo sabia inclusive o caminho que a lama pegaria. Isso foi relatado dia 11 de Dezembro na audiência pública onde a barragem de Brumadinho foi licenciada.” (LASCHEFSKI, 20’09’’, 2019), ademais, “a barragem incluía atestado de segurança” (POLIGAN, 19’30’’, 2019), eles garantiram que estava tudo bem e faltaram descaradamente com a verdade.

Acrescentando a isso, o deputado federal Rogério Correia foi o relator da comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre Brumadinho na Câmara dos Deputados. O documento trouxe informações relevantes que auxiliaram o entendimento de possíveis causas que levaram a B1 a se romper. Entre as informações, destacam-se: Incertezas em relação à presença de filtros verticais ou de tapetes drenantes. (A falta dessas estruturas pode comprometer a capacidade de drenagem e aumentar os riscos associados à barragem); Não disponibilização, pela Vale, dos dados de toda a instrumentação de monitoramento/auscultação da barragem. (Esses dados são essenciais para uma análise precisa da estabilidade e comportamento da barragem ao longo do tempo); Registro de anomalia relativa à ocorrência de artesianismo em um dos piezômetros instalados. (Isso indica a existência de um fenômeno que pode ter impactado a estabilidade e a segurança da barragem ao longo do tempo); Registro de que a investigação confirmatória teria comprovado a existência de zonas de alta pressão nas partes mais profundas do rejeito (Essas zonas de alta pressão podem indicar uma condição de instabilidade e aumentar o risco de falha da barragem); Registro da ocorrência de níveis d’água suspensos entre as camadas de rejeito (Isso sugere a presença de água acumulada em áreas que podem influenciar negativamente a estabilidade da barragem).

Todas essas informações escancaram a crueldade e irresponsabilidade da Vale S.A. para com o “acidente” anunciado e já previsto em Brumadinho.

Em uma entrevista da GloboNews, que também faz parte do documentário (min. 6’35’’), Fábio Schvartsman, presidente da empresa na época do crime, diz que ela não poderia ser condenada pelo acidente (sic) por ser uma jóia para o país. A fala dele evidencia tamanha negligência da empresa em relação a vida de todas as vítimas da tragédia, em que, mais uma vez, o lucro triunfa sobre todas as mortes. “[…] e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com outros homens” (Marx; Engels, 1998), pois o trabalhador tornou-se um soldado, calçando de todas as opressões e violências do sistema, sempre em função do enriquecimento de alguns. Entretanto, a
segurança das comunidades, dos funcionários e a preservação do meio ambiente deveriam prevalecer sobre a busca incessante pelo capital. “É uma ditadura do poder econômico da mineração sob o nosso território” (TECA CORUJO, 54’54’’, 2019).

Nessa esteira de ideias, destacam-se a resposta do diretor Richardson, ainda ao site de notícias Brasil de fato, sobre o aspecto mais marcante de sua produção e a fala, presente na película, de um morador da região sobre a atividade mineradora: “A relação promíscua da mineração com esses territórios. Isso é o que ficou mais evidente. As famílias são reféns da mineração, o poder econômico toma conta de tudo: creche, escola, todo o equipamento público com o qual o Estado não arca, a Vale “dava” para eles”, diz o diretor; “Acabou a mineração, não tem serviço mais não.”, declara Antônio Gonçalves, habitante do córrego do feijão (60’05’’). O relato do diretor e o depoimento do morador explicitam a relação dominante entre a Vale e a cidade, é uma atividade eminentemente antropofágica e predatória. A empresa consome e se apodera de todo o território, é impelida pela necessidade de criar vínculos em toda parte, explorar em toda parte, de modo a sucumbir a organização e o desenvolvimento de quaisquer outras economias alternativas e regionais.

Ademais, “O executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx; Engels, 1998), e desde então, o Estado contemporâneo permanece o mesmo, com a classe dominante exercendo seu poder sobre inúmeras questões que interferem diretamente na vida de todos, principalmente os mais suscetíveis à vulnerabilidade. Consoante ao professor Daniel Neri (2023), a Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) eliminou o processo trifásico do licenciamento ambiental, permitindo que obras sejam aprovadas pelo único licenciamento concomitante, que implicou em aprovações rápidas para todas as solicitações de grandes mineradoras, como a Vale. Acrescento em seguida o levantamento da professora Andréa Zhouri no longa (31’06’’), de que “70% dos parlamentares do estado de Minas Gerais são financiados pelas mineradoras”, ocupando lugar de destaque em órgãos governamentais e podendo, notoriamente, mudar legislações que atrapalhem o seu poder paralelo ao governo.

Sobretudo, o filme exibe que minerar significa destruir a natureza permanentemente, em especial os recursos hídricos. Ao intercalar junto às falas de indignação as campanhas publicitárias da Vale, a obra deixa explícito a inaceitação da contínua e afamada greenwash 1 e a desleal responsabilidade social corporativa 2 da empresa, com inúmeras propagandas e compromissos com a preservação ambiental do país.

Diante dos clamores da Mãe Terra, da Irmã Água, dos clamores dos
biomas, do cerrado,da mata atlântica, da amazônia, da caatinga, dos pampas,
e dos povos tradicionais e originais,que estão sendo sacrificados no altar do
Deus Mercado, do Deus Capital. É inadmissível, posturas paliativas ou
moderadas. Nós precisamos reconhecer que o que está em xeque agora é o
futuro da humanidade.
(GILVANDER, 63’48’’, 2019)

Nesse bojo, o documentário deve ser contemplado por estudantes e pesquisadores interessados em questões socioambientais. A atual recensão dissecou a fundo toda a construção do senso crítico, a denúncia e o alerta para urgência de uma mudança que o longa-metragem propiciou aos alunos. É imprescindível que toda a sociedade se deite no divã e, por meio de uma profunda introspecção coletiva, questione as bases que sustentam certas realidades. A escala de produção precisa diminuir, alternativas realmente eficazes precisam ser desenvolvidas e o bem-estar de todos deve prevalecer.

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¹ Reivindicações e políticas verdes vazias; Empresas fazem promessas/compromissos que não cumprem; Fazer
promessas ambientais como uma forma de impressionar os consumidores e investidores, sem dar seguimento às
ações.
² Environment, Social and Corporate Governance (ESG), entendido como os critérios ambientais, sociais e de
governança de uma empresa, como forma de gerar valor tanto para seus investidores quanto para seus
stakeholders (que abarcam a sociedade civil e outros setores impactados pelas decisões corporativas de uma
organização).

 

Referências:
DRUMMOND, Carlos. Trecho do poema “Lira Itabirana”. Publicado no jornal Cometa Itabirano, 1984.
HERMANSON, Marcos . Documentário “Lama” promete dar voz aos atingidos pelo crime da Vale em Brumadinho. Brasil de Fato, 2019. Disponível em: www.brasildefato.com.br. Acesso em: 02 jun. 2023.
GUSMAN, Juliana. Oficina sobre crítica – Palestra em PUC Minas – Coração Eucarístico, 2023.
LEAL, Bruno Souza. Introdução às narrativas jornalísticas. ed. Sulina, 2022. 120 p. RESUMO DO RELATÓRIO CPI Brumadinho. Portal da Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: www2.camara.leg.br. Acesso em: 03 jun. 2023.
PONTES, Nádia . O lento fim das barragens que foram pivô de tragédias em MG. Made for minds, 2022. Disponível em: www.dw.com. Acesso em: 03 jun. 2023.
DE MELO BRITO, Ana Carolina Ferreira ; DIAS, Sylmara Lopes ; ZARO, Elise Soerger . Relatório corporativo  socioambiental e greenwashing: análise de uma empresa mineradora brasileira. Scielo, 2022. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 20 jun. 2023.
BELASQUES, Bruna ; CASTRO, Bruno ; APOLINARIO, Dante ; TEMÍSTOCLES, Isabela; POLLETO, Leonardo. ESG: As práticas e contradições da Vale, da Petrobras e da Natura. CartaCapital, 2022. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br. Acesso em: 20 jun. 2023.
GOMES, Marcelo ; MOREIRA, Ana Camila . Mineração ameaça comunidades e meio ambiente apesar da lei “Mar de Lama Nunca Mais”. Nesp (Núcleo de Estudos Sociopolíticos), 2022. Disponível em: https://nesp.pucminas.br. Acesso em: 17 jun. 2023.
NERI, D. M. Problema da mineração no Brasil – Palestra em PUC Minas – Coração Eucarístico, 2023.
MARX , Karl ; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. ed. Boitempo, 1998.

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