“Travessia” e a Resistência da Memória

Por Fábio Luis Almeida Garcez de Carvalho.

Foto: Reprodução/Travessia

Existe um famoso dito popular que afirma que “quem não é visto, não é lembrado”. De fato, é por meio da memória que histórias, pessoas e culturas sobrevivem à inevitável passagem do tempo e superam a barreira da morte, deixando para as futuras gerações legados e aprendizados. Entretanto, o que ocorre quando não permitem que um certo grupo de pessoas tenham suas vidas registradas e guardadas em lembranças? 

Essa é a temática principal do curta-metragem Travessia, de 2017. A diretora, Safira Moreira, se motivou a realizá-lo ao perceber a escassez de fotografias antigas de negros no Brasil, principalmente após tentar, sem sucesso, encontrar fotos de usa bisavó e avó maternas. A poesia e a sensibilidade presentes na obra foram reconhecidas por diversos festivais nacionais e internacionais, chegando a ser o curta de abertura do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam de 2019.

Para ilustrar a fragmentação e o apagamento da memória da população negra, o filme se inicia mostrando partes de uma foto enquanto o poema Vozes-Mulheres de Conceição Evaristo começa a ser declamado ao fundo. A imagem, que inicialmente parecia ser sobre a mulher negra ali retratada, revela ter como assunto central a criança branca em seu colo, o que fica ainda mais claro na legenda da fotografia, “Tarcisinho e sua babá”, na qual nem consta o nome da mulher. Uma forma inteligente de contextualizar o espectador e provocar nele a empatia necessária para entender o peso da história sendo contada.

Essa empatia é aprofundada quando em seguida entendemos, por meio de um depoimento, a raridade com que famílias negras tinham a oportunidade de se fotografarem, à medida em que era algo comum para as brancas devido à disparidade financeira entre elas. Enquanto a mulher conta, no relato, que a única foto que tem de certos parentes é de um casamento que ocorreu há cerca de 50 anos, uma ocasião excepcional na qual a família se juntou para fazer um álbum, somos apresentados ao que pode ser algumas dessas fotos, pelas mãos de uma jovem.

A partir desse trecho o filme já apresenta uma das suas principais críticas, propondo uma reflexão sobre as como as consequências socioeconômicas da escravidão no Brasil vão muito além daquelas mais comentadas nos livros de história. Tais sequelas, de fundo racista e colonial, se ramificam em inúmeros problemas que impactam diretamente na subjetividade dos indivíduos negros, em como eles se enxergam, como enxergam o mundo e quais são suas motivações e sonhos. Ser privado de ter acesso aos registros da sua cultura, da sua família e da sua ancestralidade ao longo da história motiva a usufruir do direito de registrá-las hoje. 

Foi exatamente isso o que Safira Moreira fez. No momento em que a jovem que nos mostrava as fotografias se ajeita em uma pose para tirar uma foto, seguida por várias outras pessoas e famílias negras, a obra chega a seu ápice narrativo, emocional e social. Utilizando de uma forma belíssima a metalinguagem, o filme se torna a concretização de uma reparação histórica, afirmando que os negros estão aqui para serem vistos e lembrados.

Dessa cena até o final do curta, é tocada a música “Juána”, da cantora cabo-verdiana Mayra Andrade. Ela é cantada em uma língua nativa de África, escolha que já carrega vários simbolismos por si só, mas sua letra fala sobre mudança, o que ressoa diretamente com o poema lido na primeira cena e com a mensagem do filme. A “travessia” indicada no título é justamente essa evolução, de um passado de infâncias perdidas, submissão e sofrimento, que desemboca em um presente de luta por direitos e espaços e em direção a um futuro igualitário. É a trajetória das memórias que resistiram e sobreviveram até os dias de hoje, sejam fotografias, histórias ou indivíduos.

Assim, “Travessia” é um filme tecnicamente simples, mas extremamente poderoso nas reflexões que propõe. O uso preciso da metalinguagem e uma carga muito grande de humanidade e poesia são os pontos mais positivos da obra, e asseguram sua importância. Por ser um curta-metragem e estar disponível na internet, pode ser facilmente assistido pela maioria das pessoas, o que amplifica o potencial de sua mensagem.

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