Riget (temporadas I e II): Reflexões sobre a negação da ciência e dos saberes tradicionais

Por Lucas de Andrade

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O diretor dinamarquês Lars von Trier, conhecido por ser um dos fundadores do manifesto Dogma 95 e ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2000 com o filme Dançando no Escuro, é famoso por seus trabalhos irreverentes. Sua audácia também está presente em sua série de televisão Riget (O Reino), de 1994, que conta com três temporadas repletas de ações, diálogos e cenas surrealistas e um humor mórbido que é marca registrada do diretor. Ainda, a obra não deixa de passar uma mensagem provocante, principalmente para o mundo pós-pandêmico em que vivemos.

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A história se passa em Rigshospitalet, um hospital universitário em Copenhague (que existe de verdade); nele, um grupo de médicos com ideais duvidosos integram o setor de neurocirurgia. Paralelamente, acompanhamos a trama de um grupo de personagens formado por uma senhora, paciente do hospital no setor de neurologia, e seu filho, funcionário de limpeza e assistência no local. Esses diferentes núcleos narrativos nos oferecem visões distintas e alternantes sobre os acontecimentos ao longo da série, diferenças que se tornam mais evidentes quando o hospital começa a ser atormentado por espíritos e demônios vindos do reino dos mortos.

A trama gira em torno da luta entre a ciência e os saberes populares. A maioria dos personagens se alia à defesa de um desses lados: uma parte dos sujeitos acredita fielmente na ciência (ou em uma distorção do saber científico), às vezes tomando-a como uma espécie de escudo para as hipocrisias praticadas por eles; outros se devotam totalmente aos saberes populares e a sua pregação. Há também algumas figuras que evitam participar dessas contendas, navegando como podem em uma área cinzenta, por, principalmente, identificarem um certa a ignorância nas duas vias de crença.

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Há especificamente dois personagens, oniscientes, que não interagem com nenhum dos dois grupos. São lavadores de pratos na cozinha do hospital, interpretados por atores com Síndrome de Down (interpretados por Morten Rotne e Vita Jensen). Por mais que eles não interfiram diretamente nos conflitos, sempre aparecem em cena para conversar sobre o que está acontecendo; eles se mostram conhecedores não somente das entranhas do hospital, mas também da índole e do espírito daqueles que vagam por ele.

De todos os personagens que acompanhamos, dois se destacam: Stig Helmer (Ernst-Hugo), um médico orgulhoso que ancora todas as suas ações em seu diploma, e Sigrid Drusse (Kirsten Rolffes) , uma paciente que com frequência se interna no hospital para alimentar a crença nos espíritos e em formas espirituais de cura. Os dois empreendem um longo embate, agravado quando os eventos sobrenaturais no hospital se intensificam. Enquanto Drusse é extremamente afetada e tenta entender e resolver os ataques espirituais, Helmer parece ignorar as anormalidades ao seu redor, ou até mesmo não se importar com elas.

A obra não busca passar uma história clara e coesa. Por mais que todos os acontecimentos ocorram de maneira linear, o peso da estética surrealista ao estilo David Lynch (maior inspiração para Lars Von Trier nesta obra) faz com que o enredo seja desorientador em certos pontos, não se sabendo ao certo o motivo da exibição de certas cenas ou ações desconexas dos personagens. Porém, isso não atrapalha entendimentos sobre a obra: podemos navegar facilmente em sua superfície ou mergulhar em seus significados mais profundos.

Assistir a serie em um contexto pós-pandêmico também orienta nossas percepções, pincipalmente sobre os orgulhosos médicos do hospital, que colocam suas crenças e desejos pessoais acima do seu compromisso com os pacientes e com a ciência. Isso fica claro, por exemplo, nas atitudes de Helmer, que comete erros ao realizar cirurgias no cérebro de pacientes e os deixa praticamente lobotomizados. Mas, por estar inebriado com a certeza de que médicos não falham, Helmer ignora sua má-conduta, culpando supostas predisposições dos pacientes pelo resultado obtido. Casos análogos a este puderam ser vistos, na vida real, durante a pandemia: diversos profissionais da saúde preferiram negar o conhecimento científico e receitar medicamentos de eficácia não comprovada para o tratamento da Covid-19. Assim como o ficcional Helmer, ignoraram o dever ético da medicina por causa de egos e crenças pessoais do individuo.

Não obstante, não é somente Helmer apresenta esses ideais torpes na série. Há uma sociedade secreta de cirurgiões dentro do hospital universitário que partilham as mesma ideias e pretensões desse personagem. Eles alegam estarem unidos pelo avanço da verdadeira ciência, negando qualquer tipo de tratamento que eles considerem “alternativo”. Com isso, questões psicológicas e espirituais são totalmente negadas pelo grupo. Focam apenas no culto a carne e cravam que somente cirurgias e pesquisas invasivas possuem resultados reais. Qualquer outro tipo de saber, principalmente os tradicionais, que não se encaixam no distorcido conceito de “ciência pura” proposto pelo grupo, é completamente excluído do tratamento dos pacientes, que acabam se tornando meras cobaias para experimentos hospitalares – um Patch Adams às avessas. 

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Riget é uma serie rica em discussões sobre os conflitos entre crenças, a ciência e a natureza humana, e é um prato cheio para todos os amantes de obras surrealistas. O baixo orçamento da obra não interfere nada na qualidade de produção – podemos dizer que esse fato acaba contribuindo para a ambientação suja e sombria necessária ao seu argumento. A série também conta com aparições de atores de peso como Udo Kier, ator que interpretou o vilão Michael em Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019), e Thomas Bo Larsen, famoso por estar filmes prestigiados de Thomas Vinterberg, como A Caça (2012) e Festen (1998). Parafraseando uma das aparições do diretor ao final dos episódios, “se você deseja passar mais tempo no reino esteja pronto para aceitar o bem assim como o mal”.

Riget está disponível para assistir no streaming MUBI

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