Piracema em Tiradentes, parte 2: ritmos do tempo

O blog de crítica da Cardume Curtas acompanhou a Mostra Foco, a competitiva de curtas de uma das principais janelas de exibição do cinema nacional contemporâneo.

POR: Juliana Gusman

Impressões: Mostra Foco – Série 2

I.

A segunda sessão da Mostra Foco, a competitiva de Tiradentes, talvez seja a mais desafiadora se colocarmos como objetivo decifrar e interpretar escolhas curatoriais. A equipe composta por Camila Vieira, Leonardo Amaral, Lorenna Rocha, Mariana Queen Nwabasili e Pedro Guimarães certamente evitou ordenações mais óbvias, que aproximariam motes temáticos ou formais pela força harmônica das semelhanças. O estranhamento parece ser a chave de leitura proposta para os cinco curtas desta série. De qualquer maneira, esses filmes bastante distintos, postos em conversação, conseguem adensar, cada qual a sua maneira, o desejo do festival de refletir sobre “as formas do tempo” e suas modulações na própria textura fílmica: em nenhuma das obras essa é uma questão fortuita. Também parece haver uma preocupação com ritmos: se O Canto, O Materialismo Histórico da Flecha contra o Relógio e Onde Está Mymme Mastroiagnne – o primeiro, terceiro e quinto filme da sessão – intensificaram as vibrações da tela ao público, Cassino e Moventes, que os intercalam, abrandam esses efeitos. Pelo contraste, talvez consigamos perceber outros caminhos de fruição.

II.

O Canto, de Izabella Vitório e Isadora Magalhães, se inicia com um belíssimo plano em contra-luz da Mestra Rosália Gomes, uma das estaladeiras de fumo da cidade alagoana de Arapiraca. Esse tipo de  preocupação estética, que também é ética e política, engrandece o trabalho dessa e de outras mulheres, erigindo, cuidadosamente, os arquivos e a memória do nosso tempo.  Por vezes, a câmera lenta e outros efeitos, como a imagem em reverse,  adocicam as coreografias de uma vida (in)comum, transformando-a em rituais de pura magia. Aqui, a música diz mais que a palavra seca – e é muito bom que o curta deixe à voz over apenas o pouco essencial; as diretoras confiam na força do saber expressivo dos corpos que dançam o dia-dia do campo.

Ao fim da projeção, testemunhou-se uma bonita materialização da “mágica empática” da qual fala a teórica Jane Gaines, que faz com que as audiências reajam física e concretamente ao que lhe é mostrado em tela: “por meio dos sentidos e para os sentidos”, O Canto converteu o aplauso em batuque, e o conhecimento da cultura feminina do fumo tornou-se, pelo menos naquele momento, parte da nossa própria matéria.

III.

Cassino, de Gianluca Cozza, explora um universo francamente oposto: o das figuras masculinas e periféricas do Rio Grande do Sul. Um grupo de rapazes perambula pelas ruas invernais do Balneário Cassino, esvaziado na baixa temporada. Daniel, Tando e Soninho invadem as casas de veraneio e, em meio à contravenção, deixam fluir alguns aspectos de suas intimidades. O filme os dispõem, demoradamente, em diferentes espécies de penumbra: observamos sombras e silhuetas, que insinuam, visualmente, a opacidade (e a insuficiência) da representação que se almeja fazer.

Os diálogos, na verdade, são a ancoragem mais robusta da construção dessas personagens, inegavelmente machistas: Soninho conta um caso de um xaveco frustrado, prerrogativa para uma sorte de comentários depreciativos dos amigos. A zombaria entre eles não tensiona suas virilidades, necessariamente; ao contrário, ela faz parte de uma comunicação raramente baseada no afeto, já que o amor entre homens, como analisou o filósofo Michel Foucault, precisa ser reprimido de todos os lados. O xingo e a amizade sempre se misturam.

Ainda que o filme acene para suas próprias lacunas –  ele não ambiciona dizer tudo sobre a vida desses jovens –  e  não exponha a mulher, alvo das ofensas, obrigando-nos, como espectadores e espectadoras, a pactuar com o achincalhe sexista, ele, ao menos em minha leitura, não confronta suficientemente, em sua própria diegese, aquilo que é dito. Em nome de uma observação/escuta (ficcional) quase antropológica de um tipo social (e podemos pensar até em uma fetichização por parte de realizadores interessados em investigar um outro de classe com o qual não se sabe lidar, e que, por isso, não é enfrentado e acolhido em suas contradições, planificadas e acatadas sem questionamentos), o curta permite que uma visão de mundo heterocentrada e masculinista circule muito livremente. Esse é um risco, sobretudo, quando pensamos nas lidas com o público, que poderá se relacionar com a obra de jeitos bastante imprevisíveis.

Meu desconforto (não em um bom sentido, e ele há) se agravou quando, no debate sobre o filme, o diretor afirmou tonificar a escrotidão dos rapazes, uma vez que não se interessa por personagens corretas. Mas não seria essa “incorreção” misógina perdoada, justamente, pela relação objetificadora e domesticadora com aquilo que vem de um lugar periférico? Se o incômodo é uma aposta consciente, e ele parece ser, percepções negativas são algumas de suas possíveis consequências.

IV.

Na conversa sobre O Materialismo Histórico da Flecha contra o Relógio, o diretor Carlos Adriano disse que o seu trabalho poderia ser um panfleto, mas é um poema. Ouso discordar dessa possibilidade: a complexidade dessa obra a afasta radicalmente da simplicidade e do didatismo da linguagem panfletária. Muitas matérias de expressão – trechos escritos da literatura política, excertos de filmes, reportagens televisivas, fotografias e a própria trilha sonora – são articuladas em uma montagem dialética capaz de produzir contundentes asserções e sínteses sobre nossas mais urgentes adversidades contemporâneas: os genocídios dos povos originários do Brasil e a Nakba palestina, resultados de projetos coloniais que guardam mais consonâncias do que se pode imaginar. Os tempos –  da dominação capitalista e de suas contendas – são tema e forma deste filme-ensaio benjaminiano, que recorre ao choque visual e sensorial entre imagens de diferentes contextos para investigar a violência da história, ou a história da violência, à contrapelo. Assim, escava e fertiliza resistências para que se plante, como diria Karl Marx, a poesia do futuro. O Materialismo Histórico da Flecha contra o Relógio poderia ser um tratado teórico, mas é arte.

V.

Moventes, de Jefferson Cabral, reduz, novamente, a temperatura da sessão, ainda que dialogue com o pulsante Os Cantos no trato singelo das domesticidades cotidianas. São sobrepostas às imagens mundanas leituras de cartas assinadas por diferentes pessoas de um mesmo núcleo familiar. Em todas, porém, discorre-se sobre as aflições e esperanças íntimas que motivaram a migração, de cada uma delas, de Natal para São Paulo. Trata-se de um filme menor não em qualidade ou importância, mas talvez em pretensões: não se almeja refletir sobre fenômenos político-sociais, mas sobre a memória, a angústia e as aspirações individuais que atravessam a experiência de mover-se na (e contra a) correnteza do país. E é justamente por acreditar na importância da subjetividade de sujeitos tão frequentemente tomados como mera informação estatística, que o filme engrandece pequenezas, e se eleva.

VI.

Fechando a sessão, onde Onde Está Mymme Mastroiagnne?, de biarritzzz, desestabiliza, definitiva e positivamente, qualquer comodidade espectatorial que ainda poderia nos restar. Uma cabeleireira do Pina, no Recife, perde sua amiga Mymye no metaverso e recorre à ajuda de outra personagem virtual, Delly-lov, para encontrá-la. Nessa jornada de busca, biarritzzz implode gênero e gêneros.

Para além da cisheteronorma que nos produz, binária e coercitivamente, como homens e mulheres, as personagens do curta são machos-tubarões, transfadas camaradas e pixel-strippers: não há limite para a imaginação e encarnação (des)identitária. Não obstante, o filme também perturba definições e classificações cinematográficas fáceis: a ficcionalização está na vida em carne e osso, quando a cabeleireira anuncia o desaparecimento de Mymye: na verdade, o que perdeu-se foi a conta ligada a essa personalidade-avatar do jogo Second Life, mantida por quase quinze anos. Porém, uma vez no metaverso, o filme torna-se documentário. A indicialidade da obra está na imagem estilizada dos games: a procura por Mymye é real, não nos deixemos duvidar. E, nessa transa provocativa entre gênero–corpo e gênero-filme, afirma-se a concretude e a amplitude das vidas queer, que existem, como podem, nesses espaços contínuos e complementares, jamais excludentes.

Reivindicando afinidades com a cultura do machinima (junção das palavras “machine”, “animation” e “cinema”, em inglês), Onde Está Mymme Mastroiagnne? foi realizado com câmeras de celulares e capturas de tela do jogo, assumindo a baixa resolução (e o questionamento da noção de autoria) como posicionamento político. É interessante que ele componha a outra ponta do programa que se iniciou com O canto, ancorado, contrariamente, na altíssima resolução fotográfica. Mas lá e cá, escutou-se o que o tema das obras reivindicavam esteticamente. Cada filme é um filme, e são essas infinitas possibilidades criativas que o estranhamento proposto pela curadoria consegue, surpreendentemente, revelar.

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