Pertencimento e identidade: quem sou eu no mar de lama?

Por Isis Grazielle Antônio da Silva

Foto: Trem Chic/Divulgação.

Lavra (2021), filme dirigido por Lucas Bambozzi, conta a trajetória de Camila, uma geógrafa, que retorna à sua terra natal depois que o rio de sua cidade é contaminado em decorrência de um grande crime ambiental, provocado por uma mineradora. A protagonista segue o caminho da lama que atingiu o rio, destruiu povoados, tirou vidas e causou calamidades na comunidade, sem nunca nos mostrar seu rosto. Tomada pela dor, busca ainda por sua identidade, por pertencer àquele local. Ela segue observando os impactos da mineração, visitando diferentes regiões de Minas Gerais, se envolvendo com movimentos de resistência e militantes da causa. Lavra é um filme de estrada, que acompanha o percurso da protagonista rumo a recuperação do direito à vida em meio aquilo que é mais valoroso para o mercado, o  capital.

O doc-fic (documentário com traços de ficção) utiliza Camila como um dispositivo. Ela é um elemento da ficção, criado pela roteirista Christiane Tassis e que funciona como um elo para nos aproximar dos agentes que vivenciaram a tragédia na pele. Camila está sempre de costas para a câmera e se revela apenas no fim. Essa escolha pode levar a alguns caminhos interpretativos. A mulher sem rosto pode fazer com que seja possível identificá-la como qualquer uma das vítimas, em um gesto metonímico. Ainda, a dificuldade da personagem em se sentir pertencente, já que deixou a cidade natal há anos e não foi atingida diretamente pelo crime da mineradora, é tangenciada pela redescoberta da própria face. Há uma transformação da personagem não apenas em seu arco narrativo, relacionando a um resgate de sua identidade, mas também na sua lida com a própria imagem.

Camila, uma mulher branca e de cabelos pretos, no centro da imagem, vestida com uma roupa branca, tomando chuva em uma estrada de pedras e na chuva.
Camila retorna a sua cidade natal após devastadora tragédia. Foto: Trem Chic/Divulgações.

Toda a estética do filme nos remete ao sentimento da personagem em seu processo de resgate e encontro com aqueles e aquelas que perderam moradias. A fotografia “crua” próxima do real. O filme traz planos e enquadramentos muito abertos, planícies, imagens de drone das barragens. Também apresenta contrastes, trabalhando com a sombra e primeiros planos quando se volta para os moradores atingidos. Na montagem, se joga com o  blackout (tela preta), em uma evocação da desolação. As máquinas são como monstros invisíveis: nunca aparecem no quadro, mas se fazem presentes com seus sons incômodos e ininterruptos, que remetem ao potencial de destruição da vida humana e da natureza.

As barragens de contenção de rejeitos são estruturas construídas para conter os materiais resultantes da manipulação do mineral. As tragédias ocorridas com barragens de mineração em Minas Gerais nos últimos anos não foram ocorrências causadas por fenômenos da natureza, mas resultantes da adoção de métodos inseguros para a exploração do minério, com a redução de custos e foco no aumento dos lucros. As tragédias motivaram maior fiscalização,  que constatou a presença de alto risco em outras barragens do estado. O que prevalece são os interesses de grandes setores da mineração que esteve historicamente associada à ideia de desenvolvimento do país, desconsiderando-se os impactos que o risco iminente da ruptura de uma barragem de rejeitos pode provocar. Dessa forma, os malefícios não são considerados ou são minimizados.

Lavra, então, se apresenta como uma ferramenta de denúncia contra as mineradoras que acreditam que gerar emprego, renda e economia para a região é o suficiente, pois não se posicionam diante do grande descaso com a segurança e qualidade de vida das pessoas que vivem em seu entorno.

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