Por Lucas de Andrade Moreira
Parts Unknown foi a última série documental de Antony Bourdain antes de sua trágica morte em 2018. Estrelado em 2013, tendo ao todo 12 temporadas, todos os episódios exploram a vasta variedade de culturas ao redor do mundo, nos apresentando pessoas incríveis e culinárias locais com uma visão mais aberta, sem possuir um extrema ótica americanizada do mundo. Uma vez que, mesmo sendo um programa da CNN americana, Bourdain sempre se preocupava em fugir de pontos turísticos independente do lugar onde ele estivesse, e principalmente de deixar seu objeto falar. Assim, conseguiu captar uma visão local e fora do senso comum sobre assuntos regionais e acerca do estilo de vida das inúmeras partes do mundo que visitou.
É impossível falar sobre Parts Unknown sem falar sobre a figura de Anthony Bourdain. O chef americano de cozinha ganhou fama nos anos 2000 após ter escrito o livro “Cozinha Confidencial”. Essa obra Bourdain dava holofote ao lado obscuro da alta cozinha, contando os segredos, falcatruas e safadezas usados diariamente pelos grandes restaurantes. O livro gerou um abalo na indústria e fez o nome do autor ganhar fama no meio gastronômico. Não demorou para o Chef conseguir projeção na mídia escrita, tendo artigos publicados na The New Yorker, New York Times, The Observer e outros grandes jornais. Mas foi em 2002, com o seriado de TV “A Cook’s Tour” que Bourdain entrou no ramo dos documentários, viajando o mundo e utilizando da linguagem documental para explorar não somente a comida dos muitos lugares em que viajava, mas também a cultura e a vida cotidiana dessas partes do mundo.
Em Parts Unknown essa preocupação em mostrar não somente pontos turísticos, e focar mais em perolas ocultas no mundo é evidente. Um grande exemplo disso é a vinda de Bourdain até a capital mineira em 2016 para a gravação de um episodio da serie. A justificativa para a escolha da gravação não foi porque Belo Horizonte é um grande ponto turístico, ou que possui fama no exterior como Rio de Janeiro e Recife, outros dois lugares visitados na serie. Mas sim, porque em suas andanças e visitas pelo Brasil, o nome da gastronomia mineira sempre chegava aos seus ouvidos, levando-o a explorar o influente “lado B” da cultura brasileira.
Isso diz muito sobre o método documentarista que Bourdain usava para escolher seus temas. Seguindo os moldes do documentário direto francês Bourdain preferia adotar um modelo mais ensaístico de documentário, estabelecendo monólogos durante os episódios para guiar o espectador por sua experiência pelos locais visitados. Porém, há uma grande preocupação em deixar o objeto do documentário falar, de maneira a tentar fornecer um aprofundamento da visão sobre o local. Assim, tentando sempre colocar em suas obras não apenas pessoas famosos e influentes para falar sobre o local, mas também trabalhadores e moradores locais que possam acrescentar informações que seriam normalmente ignoradas por um simples turista. Este aspecto na obra de Bourdain enriquece bastante todos os episódios da série, acrescentando uma camada de autenticidade para o ponto de vista defendido. Em contrapartida, a documentários de viagem “comuns”, que se contentam apenas a visitar superficialmente um local, comer sua comida e dizer que está bom, ele escolhe outro caminho. Nesse quesito, Parts Unknown vai além, tendo episódios que tratam, além da comida, sobre ao Iran pós-guerra, a violência urbana em Glasgow na Escócia, o apagamento da cultura negra no Brasil e a primeira visita de um presidente americano ao Vietnam depois do final da guerra em 75 para descrever a cultura local por uma ótica que vai além de um simples turista observando o exótico.
A série também é ousada no quesito linguagem e estética cinematográfica, buscando inspiração de diversos estilos e autores para construir a narrativa do documentário. Deste modo, consegue escapar de uma lógica monótona de produção documental, com episódios gravados com montagens aceleradas ou com planos lentos e contemplativos, dependendo do local e da mensagem que o episódio pretende passar. Havia uma grande preocupação com a criação na produção do documentário. Em um podcast gravado em 2011 Bourdain relata para o apresentador Joe Rogan que sempre estava em contato com a produção para inovar e dar uma cara mais autêntica para cada episódio. Propõe, por exemplo, desafios como gravar a comida italiana, que apresenta uma variedade de cores, em preto e branco. E isso transparece nos documentários, mostrando maneiras únicas de observar os cenários, as pessoas e a cultura de cada espaço visitado. Em alguns episódios essa preocupação com a linguagem fornece um tom único para a narrativa, como é o caso do gravado em Marselha na França, onde a montagem ao estilo da nouvelle vague (movimento do cinema francês dos anos 60) faz um contraste entre a alta cozinha preparada em um restaurante renomado da cidade e Bourdain acompanhando um pescador tradicional que ganha a vida nas águas do mediterrâneo para suprir o restaurante.
A série também conta com um olhar típico da crítica gastronômica quando está dissertando acerca da comida e cultura local dentro de um bar ou restaurante. Isso é perceptível na preocupação em mostrar além da mesa em que Bourdain está comendo. Os episódios se empenham em voltar a câmera para os arredores do local, flagrando os pratos que chegam à mesa de outros clientes, assim como suas reações ao ambiente e a comida. Essa prática de estar atento aos arredores é usual no mundo da crítica gastronômica para avaliar uma série de quesitos específicos em restaurante. Porém, na série esse artificio é usado para colocar a localidade visitada e os moradores locais como foco da narrativa, uma vez que Bourdain tenta muitas vezes se colocar nos documentários como um personagem secundário, apenas um narrador que apresenta o mundo para o espectador. Muitas vezes o carisma de Bourdain não permite que isso aconteça, roubando a cena e fazendo um documentário que, a princípio, seria inteiramente sobre a cultura de um povo ter um pouco de foco sobre ele próprio. Isso é comum em um documentário com um foco mais ensaístico. Agnès Varda em suas brilhantes obras documentais como “Daguerreótipos” e “Visages, villages” também dá um foco pessoal indispensável na narrativa. E talvez tenha sido essa camada pessoal impressa na série, e em outros trabalhos de Bourdain, que tenha transformado sua obra em algo extremamente influente no meio gastronômico (e quiçá na cultura pop).
A obra de Bourdain é vasta, sendo composta por inúmeros documentários, livros e artigos publicados. Tendo até mesmo participações especiais em grandes filmes, como é o exemplo da produção americana “A Grande Aposta” (dirigido por Adam McKay) onde Bourdain aparece para explicar o que é um “Short” no mercado de ações. Chef de cozinha, crítico, documentarista, vencedor de vários Emmys e viajante, o legado de Anthony Bourdain ficara para mostrar que viajar pelo mundo pode ser incrível e recheado de diversos tipos de experiências, sendo preciso estar de cabeça e alma abertas para vive-las. Pois é isso que separa um mero turista e um viajante.
Belo texto.