Ótica frouxa

Letícia Santos Góis

 Lavra (2021), o documentário de Lucas Bambozzi, ensaia uma novidade no que se refere à forma de documentar os relatos e as vivências de quem sofreu com os crimes cometidos pelas empresas de mineração Vale e Samarco. A abordagem do diretor de fato se destaca em relação a alguns aspectos do que conhecemos e identificamos como linguagem documental. A escolha dos planos e dos movimentos de câmera, que na maioria das vezes foram feitos em follow shot, isto é, a câmera seguindo a personagem no plano, deram um tom totalmente orgânico para a produção. Esse tom intimista usado na linguagem audiovisual do filme vem da tentativa do realizador de retratar os sentimentos reais de maneira mais próxima e sentimental das personagens de seu filme. No que tange a sensibilidade do enredo sobre a naturalização da empresa no território mineiro e a consequência disso na vida das pessoas que vivem ali, o documentário cumpre bem seu papel. O filme trata de maneira incisiva e sensível a exploração ambiental e a dependência econômica da cidade explorada pela mineradora. Porém, o filme não se consuma em seu caráter artístico e proposta inovadora de retirar as histórias vividas da perspectiva do real, ele na verdade não cumpre essa promessa de ser tão diferente assim, uma vez que repete padrões hierárquicos entre documentarista e personagens entrevistados.

O documentário traz uma proposta de ficcionalização a respeito da trajetória de Camila, a personagem principal, que retorna para sua cidade natal, Governador Valadares, para se conectar com seus conterrâneos em situação de pós-incidente. A proposta, de acordo com o diretor, não era fazer um filme denúncia ou um filme panfletário, mas sim conectar com o filme a questão territorial e identitária das cidades e das pessoas que nela vivem. Demonstrar a relação intrínseca entre a identidade de um povo e a identidade territorial, a possibilidade de se reconhecer através do reconhecimento de seu lugar. Até ai, tudo bem. Minha análise, no entanto, não é em relação ao objetivo do realizador, mas sim à forma de realizar. No que se refere ao gênero documentário, me alarma a falta de cuidado com aqueles que se tornam objetos de pesquisa em detrimento de uma realização artística quase pessoal. Os crimes ambientais que aconteceram nas cidades interioranas de Minas Gerais foram um fato histórico delicado e triste que o filme de Bambozzi não soube abordar nesse sentido. Trazer essa realidade para ficção foi uma ação que potencializou a conhecida hierarquia entre o cineasta e os personagens documentados. O filme perde sua sensibilidade quando encena a relação da protagonista Camila com a cidade, isso sobressai entre todos os aspectos imagéticos que apontavam para outra direção. Para que as histórias fossem de fato tocantes, era preciso que houvesse uma genuinidade verdadeira e não uma técnica de atuação como foi utilizada, a chamada “fé cênica”.

O fato de Camila ser um álter ego da roteirista do filme, Christiane Tassis, traz à luz a explicação do porque ela não nos convence. A voz que narra e amarra toda a trama não carrega o sentimento daquela vivência contada e se torna um dos principais aspectos responsáveis por distanciar o espectador. O filme parece um relato frio, distante pela ótica escolhida e centrado na experiência pessoal tanto da personagem fictícia como da perspectiva do diretor. Aquilo que precisava tocar não é atingido, os personagens reais viram recursos dramáticos para a trajetória de Camila e para a arte de Lucas aparecerem. Uma vez que a motivação do filme era de fato conectar a “experiência” de Camila, recém-chegada do exterior, à sua identidade natal, territorial e das demais pessoas que tiveram suas condições de vida ceifadas, é estranho que se tente atingir esse objetivo através de alguém que não fosse dona daquela verdade. 

Antes mesmo de ouvir Lucas falar sobre o filme, a realização já havia dito muito por si só, o que não significa que as explicações do realizador não tenham ajudado a completar a percepção a respeito de sua falha. O diretor conta em debate, após exibição do filme, sobre as escolhas e os recursos utilizados para realizar as situações ficcionais vistas em tela, evidenciando que algo sério passou despercebido. A encenação das personagens em tela fica clara em todo momento da narrativa, elas começam sutis provocando quase dúvidas no espectador a respeito da intenção da cena, mas com o passar do tempo se tornam repetitivas e incômodas. Desde o início do filme a perspectiva a respeito da situação é distante e os recursos utilizados para a realização do recorte do filme potencializam essa lacuna. É possível perceber que as personagens entrevistadas são moldadas para que ajam como se não estivessem, que as situações são forjadas em um tempo escolhido para ser o real. O movimento de câmera ao acompanhar uma nova personagem que acaba de chegar “inesperadamente” é brusco e responsável por tirar o espectador diversas vezes da imersão diegética. Tais aspectos formam uma narrativa difícil de conectar o espectador à história.   

 

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