Curtir, comentar, salvar e compartilhar: a positividade tóxica das redes

Por Ane Guimarães.

Foto: Reprodução/Netflix

Hoje, o sentimento de insatisfação é amplamente utilizado pelo mercado, pelas indústrias e, também, pelo patriarcalismo. Esse afeto, por mais contraditório que possa parecer, ganha forças com o excesso de exposição da positividade nas redes sociais. Tornam-se inaceitáveis quaisquer perspectivas de fracasso, criando-se, justamente, um espaço tóxico, no qual o erro, apesar de inevitável, não é admitido. Tinder, Snapchat, Instagram, Facebook, LinkedIn e TikTok, qual ou quais dessas redes sociais fazem parte do seu cotidiano?

O documentário O dilema das redes, que reúne depoimentos dos ex-executivos das maiores empresas do Vale do Silício e acadêmicos, abordou essas questões. O filme destaca que as crianças e os jovens são os mais afetados pela falta de instrução e ensinamento sobre os benefícios e malefícios de estar diante das telas. A obra apresenta, por exemplo, dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças estadunidense, segundo o qual houve um aumento de 62% de casos de autoflagelo em meninas americanas de 15 a 19 anos entre 2009 e 2018. Nas pré-adolescentes de 10 a 14 anos, esse crescimento foi de 189%. E esse padrão é repetido nas estatísticas de suicídio. O número de casos aumentou 70% entre as adolescentes e 151% entre as pré-adolescentes americanas.

Segundo Tristan Harris, ex-especialista em ética de design do Google e um dos entrevistados do documentário, tudo isso é agravado pela busca de um padrão de beleza inalcançável. Ele acrescenta, também, que o ser humano não evoluiu para receber críticas de milhares de pessoas, como acontece nas dinâmicas das redes sociais. Essa inflação da validação do outro faz com que a frustração se torne ainda maior. Para Justin Rosenstein, ninguém esperava que o botão do curtir pudesse causar depressão em adolescentes por não ganharem um número de curtidas suficientes. No documentário, ironicamente, ele é apresentado como um dos criadores da ferramenta do like do Facebook.

Harris pontua, não obstante, que tudo o que as pessoas fazem online é monitorado, rastreado e salvo. As plataformas sabem identificar através dos algoritmos quando as pessoas na frente da tela estão tristes ou felizes, além de conseguir mapear a personalidade dos usuários das redes. Shoshana Zuboff, autora do livro Age of Surveillance Capitalism e professora aposentada Administração de Negócios de Harvard, diz que a coleta de dados é tão grande que nunca na história da humanidade foram reunidas tantas informações de pessoas individualmente. Neste cenário, as empresas são capazes de aprimorar cada vez mais as previsões da personalidade e do “eu” que está atrás da tela, com objetivos de gerar lucro. 

O documentário destaca que empresas, lançando mão dos algoritmos, usam os dados coletados de cada pessoa para projetar modelos de sujeito, nomeados como “vudus” no documentário, e, dessa forma, tornam possível prever suas ações. Todas as curtidas, e até o tipo os vídeos que captam a atenção por mais tempo, contribuem para o aprendizado da máquina. O algoritmo é capaz de sistematizar, assim, conteúdos que são próximos do interesse do usuário, estimulando o consumo. Harris enfatiza três objetivos principais das empresas: engajamento, crescimento e publicidade. Quanto mais tempo diante da tela, mais anunciantes são beneficiados produzindo, automaticamente, mais monetização para as empresas. Entretanto, como mencionado anteriormente, esse conteúdo direcionado nem sempre é benéfico para o público consumidor. 

Byung Chul Han (2014) diz que a constante “positivação” da vida, uma consequência das dinâmicas de mercado estabelecidas nas redes, é uma necessidade simbólica criada na sociedade contemporânea. É comum a afirmação de que o sujeito deve estar bem o tempo todo, como é mostrado nas fotos de influenciadoras digitais. O autor expressa a necessidade do sujeito de reprimir qualquer ação ou pensamento negativo, exibindo só o que é bom. Isso acabou gerando nos indivíduos um “desaprender do sofrer”. Para Han, o sofrimento, ao ser encarado como algo que deve ser sublimado, é extremamente prejudicial ao processo de aprendizado que o sujeito deve acumular ao longo da vida. E no caso das influenciadoras, isso pode gerar aos seus seguidores sentimentos de fracasso e angústia ao não conseguirem reproduzir essas ações mostradas de forma simplista.

A percepção de Han sobre a recusa do sofrimento em prol de uma vida sempre feliz para ser exibida está associada a uma necessidade crescente dos sujeitos, principalmente daqueles que estão inseridos nas plataformas digitais, preocupados em obter audiência e seguidores. O autor também admite que a “distância é uma negativa” (HAN, p. 35, 2014), ou seja, além de seguir as pessoas nas plataformas, é preciso acompanhar tudo aquilo que está sendo compartilhado para criar a relação de pertencimento. Desse modo, os influenciadores e as pessoas que possuem contas nas plataformas digitais passam a produzir cada vez mais conteúdos (ações cotidianas da vida, pensamentos políticos, religiosos, hábitos de consumo, etc.) para dizerem sobre si, em uma espécie de narrativa do eu, e isso acaba se tornando um cartão identitário de informações de cada sujeito. As outras pessoas analisam aquilo que está sendo dito e mostrado, estabelecendo prós e contras das qualidades em destaque que fazem com que aquela pessoa mereça ser acompanhada.

Senft (2018) se referencia a Parr para dizer que hoje, através das redes, as pessoas conhecem muito mais sobre a vida do outro do que com as relações só presenciais. Ela descreve a lógica de agir nesse ambiente online como se o sujeito se colocasse em um palco público. A pessoa não só consegue esse lugar, como também ela faz o gerenciamento do seu “self” online. Isso nos faz pensar nas amarras provocadas pela preocupação com a própria imagem e com suas repercussões, o que pode ser pesado demais, cruel. É viver na base do julgamento alheio formado pela insatisfação que vem do outro, mas que, no fim, sempre acaba se tornando nossa.


Referencias

HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2014. 

SENFT, Theresa. Camgirls: celebrity and community in the age of social networks. New York: Peter Lang, 2008. 

NETFLIX. O dilema das redes. Disponível em: <https://www.netflix.com> Acesso em: 20 set 2020.


Biografia – Ane Guimarães:
Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Mídia e Narrativa (2019-2021). Integrante do Grupo de Pesquisa Mídia e Narrativa (PUC Minas). Bolsista Fapemig. Bacharel em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, aaneguimaraes@gmail.com

Um comentário em “Curtir, comentar, salvar e compartilhar: a positividade tóxica das redes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *