Comércio de teledramaturgia no exterior populariza tramas nacionais e constrói visão sobre o país

Por Carlos Eduardo Noronha.

Você chega exausta do trabalho e se esparrama no sofá. É final de tarde. A campainha toca e você hesita um pouco, num relance entre se deve ou não abrir a porta. Você decide que sim. Há uma mulher desconhecida do lado de lá, aparentemente confortável em um vestido verde casual. “Boa tarde! Sou a nova moradora do 1302. Eu e meu marido nos mudamos na terça”. Era sexta. Você retribui o cumprimento e a convida para entrar. “Muito obrigada! Mas não vou demorar. Vim apenas pedir um pouco de açúcar emprestado para terminar um bolo. O Rodrigo, meu marido, ama bolo de fubá com aquela casquinha de canela e açúcar por cima. Trouxe até a xícara! Com a mudança, ainda não tive tempo de ir até o supermercado”. Você vai até a cozinha e volta com a xícara cheia de açúcar. “São seus filhos?” – pergunta a mulher, apontando para os porta-retratos encima do aparador. Você confirma, conta que o mais velho se formou advogado recentemente e que o outro… 

Este poderia ser o começo de uma novela, mais especificamente uma novela de Manoel Carlos – aquele autor que sempre nos levava até o Rio de Janeiro para acompanhar histórias protagonizadas por mulheres fortes e apaixonadas: as Helenas. Através de sentimentos universais, como amor, ódio, felicidade, inveja e cumplicidade, Maneco recortava vivências e fisgava o público através da identificação com situações cotidianas. E esta universalidade, talvez, foi responsável por fazer a história de Laços de Família (2000) chegar a mais de 80 países; mais de 80 nacionalidades que passaram a conhecer o Brasil através dos olhos do autor. 

Pioneirismo e transformação 

Nem sempre o comércio de teledramaturgia nacional seguiu o sentido da exportação. Na década de 1960, por exemplo, o primeiro folhetim veiculado na recém-chegada televisão, 2-5499 Ocupado (1963),  não tinha raízes tupiniquins. “Em julho de 1963, o gênero é importado da Argentina pelo então diretor artístico da TV Excelsior, Edson Leite, que entregou os originais de Una Voz en el Teléfono, escrita por Alberto Migré (1931-2006), à radionovelista Dulce Santucci (1921-1995)”, explica o pesquisador Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana (USP) e membro da Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão (Emmy). 

Figura 1
Fonte: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/ha-55-anos-estreava-1a-novela-diaria-da-tv-brasileira/   / Descrição: Gloria Menezes e Tarcísio Meira participaram de 2-5499 Ocupado (1963), primeira novela diária exibida no Brasil. 

Durante dez anos a importação foi mantida. O Direito de Nascer (1964), escrita pelo cubano Félix Caignet (1892-1976) e adaptada por Teixeira Filho (1922-1984), foi um verdadeiro sucesso na TV Tupi. O gênero se expandia, caía no gosto popular e, dentro das emissoras (especialmente da Rede Globo), começava a surgir um know-how, um “modo de fazer”, que caracteriza as tramas brasileiras até hoje e contribui para a comercialização com outros países, junto com pré-produção e acompanhamento. 

A partir de 1973, compras deram lugar a vendas. Primeira novela a cores exibida no Brasil, O Bem-Amado (1973) foi exportada a mais de 30 países. Criada pelo escritor, dramaturgo e teatrólogo Dias Gomes (1922-1999), texto e obra, propriamente dita, foram comprados na íntegra. De acordo com Rodolfo Bonventti, doutor em Comunicação Social (UMESP) e diretor da Associação dos Pioneiros, Profissionais e Incentivadores da Televisão Brasileira (Pró-TV), “o fato de O Bem-Amado ter sido produzida originalmente a cores ajudou a abrir as portas para o Brasil. Além disso, o texto do Dias Gomes era inteligente e o elenco, encabeçado por Paulo Gracindo (Odorico Paraguaçu) e Lima Duarte (Zeca Diabo), magnífico”. 

Figura 2
Fonte: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1691514943610014-imagens-da-novela-o-bem-amado-1973   / Descrição: Zeca Diabo (Lima Duarte) e Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) em O Bem-Amado (1973), primeira novela a cores da TV brasileira.

Consolidação do mercado nacional 

Autor do livro A Melhor Televisão do Mundo, José Roberto Filippelli narra suas aventuras em mais de 20 anos transitando entre os continentes. De 1977 a 1999, o publicitário, executivo da Globo na época, foi quem abriu as portas do exterior para a indústria audiovisual brasileira e introduziu as novelas nas mais diversas nacionalidades, concorrendo diretamente com os produtos norte-americanos que dominavam o mercado. Contudo, nada se compara ao sucesso de Escrava Isaura (1976), romance de Bernardo Guimarães adaptado por Gilberto Braga – falecido na terça-feira, 26 de outubro, vítima de Alzheimer. 

Escrava Isaura realizou feitos inéditos no exterior e conquistou fãs do mundo todo. Foi a primeira novela brasileira a ser comercializada para países da antiga “Cortina de Ferro” (Albânia, Polônia, República Tcheca e Ucrânia). A Albânia, ainda fechada por consequência da divisão imposta pela Guerra Fria, autorizou a entrada da imprensa, primeira equipe de televisão ocidental. Já na Polônia, mais de oito mil candidatos se reuniram em um concurso de sósias dos protagonistas e a trama teve seu último capítulo exibido em um estádio de futebol. Além da Europa, foi pioneira em países africanos, como Congo, Gana e Zimbábue. 

Figura 3
Fonte: https://www.pinterest.ph/pin/779896860443420820/?amp_client_id=CLIENT_ID(_)&mweb_unauth_id={{default.session}}&simplified=true   / Descrição: Leôncio (Rubens de Falco) e Isaura (Lucélia Santos), a mulher branca que nasceu como escrava.

A novela de Gilberto Braga também foi responsável por um cessar fogo entre tropas da Bósnia e da Sérvia, durante conflito ocorrido entre 1992 e 1995; e pela suspensão do racionamento de energia em Cuba. Falando no bloco comunista, Lucélia Santos, intérprete de Isaura, recebeu o Prêmio Águia de Ouro durante visita à China, “tornando-se a primeira atriz estrangeira a receber uma premiação naquele país”, como destaca a jornalista Amanda Wanderley. 

“Até hoje, não entendo como fez tanto sucesso. A Escrava Isaura não chega a ser um romance bem escrito, mas tem um storyline absurdamente bom para uma novela. A escrava desejada por seu dono faz o espectador lidar com o medo, talvez o mais forte de todos os sentimentos. Todos nós temos medo de quem é mais forte. Quem não vai se identificar com essa escrava?” – Gilberto Braga. 

Autor de Dancin’ Days (1978), Vale Tudo (1988), Celebridade (2002) e Paraíso Tropical (2007), Gilberto Braga colecionou sucessos no Brasil e no exterior. Insensato Coração (2011), protagonizada por Paola Oliveira, Eriberto Leão, Antônio Fagundes e Glória Pires, está no ranking dos dez títulos mais vendidos, alcançando 100 países. 

Figura 4
Fonte: http://redeglobo.globo.com/novidades/novelas/noticia/2010/10/insensato-coracao-paola-oliveira-e-eriberto-leao-fazem-par-romantico.html   / Descrição: Marina (Paola Oliveira) e Pedro (Eriberto Leão), par romântico em Insensato Coração (2011). 

“Nós demoramos um ano fazendo a sinopse. Eu fiquei muito orgulhoso da sinopse. Acho que é boa, movimentada. Aliás, eu gosto muito da novela toda, eu acho a minha melhor novela.” – Gilberto Braga. 

Estouro de exportação e incorporação de costumes

“Na década de 80 acontece o estouro da exportação, que atinge todos os continentes. Como fatores contribuintes podem ser citados: a desregulamentação dos canais na Europa Ocidental e a consequente necessidade de diversificação da programação; a adoção de estratégias mercadológicas orientadas por interesses políticos de expansão de atuação; a queda do comunismo no Leste Europeu, que se abre para o mercado externo; a independência dos países africanos de língua portuguesa, permitindo a instalação de emissoras de TV; a localização de Macau, de idioma português, na Ásia; e aproximação mercadológica com o Oriente Médio”, explica Marcia Perecin Tondato, mestre em Comunicação Social (UMESP) e gerente de pesquisa do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento de Mercado (IPDM). 

Contudo, foi durante a década de 2000 e nos anos seguintes que as exportações audiovisuais atingiram e impactaram maior número de culturas. O Clone (2001), criada e escrita por Glória Perez, viajou por 107 países, muitos deles no Leste Europeu – como Rússia, Albânia, Romênia, Kosovo e Sérvia. 

Figura 5
Fonte: https://br.pinterest.com/alaidefogaa/jade/   / Descrição: Jade (Giovanna Antonelli) e Latifa (Letícia Sabatela) eram primas na trama de Glória Perez.

“Você sabe que O Clone parava Israel? Recebi uma carta muito bonita de uma mulher de lá dizendo que aquele era um momento de paz entre os primos.” – Glória Perez. 

Em atual exibição no Vale a Pena Ver de Novo, a história protagonizada por Murilo Benício e Giovanna Antonelli ganhou uma nova versão na Telemundo, emissora espanhola com sede em Miami, nos Estados Unidos. El Clon fez tanto sucesso por lá que, no ano de exibição, o nome preferido da comunidade hispânica para batizar as recém-nascidas foi Jade. 

Já em Portugal, academias de ginástica passaram a oferecer dança do ventre, devido à alta demanda dos clientes. 

Brasileiros e argentinos: unidos por um só coração

Julho de 2014: argentinos lotavam o Luna Park – estádio de futebol em Buenos Aires com capacidade para mais de 12 mil pessoas. Ano de Copa do Mundo. Mas se engana quem pensa que aquele público todo estava lá para torcer por mais uma partida. De fato, estavam para torcer, mas por outro motivo. Na porta do estádio, havia um cartaz com a chamada: Avenida Brasil, el gran final

Figura 6
Fonte: https://gshow.globo.com/novelas/avenida-brasil/noticia/ultimo-capitulo-de-avenida-brasil-confira-os-desfechos-de-carminha-nina-jorginho-tufao-e-mais.ghtml   / Descrição: Lucinda (Vera Holtz) e Carminha (Adriana Esteves), mulheres unidas por um passado cheio de mistérios.

Fenômeno em terras nacionais, Avenida Brasil (2012) ganhou o mundo. Criada e escrita por João Emanuel Carneiro, o enredo de Nina (Débora Falabella) e Carminha (Adriana Esteves) foi comercializado com mais de 140 países, em 19 idiomas, e lidera o ranking de exportação em teledramaturgia. 

As 5 novelas brasileiras mais exportadas
Avenida Brasil (147 países)
Totalmente Demais (142 países)
A Vida da Gente (130 países)
Caminho das Índias (116 países)
Da Cor do Pecado / O Clone (107 países)

Legendada ou dublada, a novela causou alvoroço nas redes sociais e pegou o público pela emoção, através de um texto ágil, trama central inesquecível e fotografia cinematográfica. 

Em tempos de campeonato mundial, a Argentina se rendeu aos encantos da novela. “O último capítulo teve clima de Copa do Mundo. Pela primeira vez, brasileiros e argentinos torceram pelo mesmo time: o Divino Esporte Clube”, comenta Mauro Alencar, fazendo alusão ao time de futebol fictício da trama. 

Figura 7
Fonte: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2014/07/final-de-avenida-brasil-na-argentina-tem-clima-de-copa-do-mundo.html   / Descrição: Capítulo final de Avenida Brasil, exibido no Luna Park, em Buenos Aires.

Teledramaturgia: a construção de uma visão nacional

Embora não conste formalmente na balança comercial, a exportação de teledramaturgia é bastante lucrativa e possibilita a criação de uma indústria audiovisual consistente, nossa, cada vez mais presente em diversos territórios. “Não se pode deixar de reconhecer que a novela, junto ao futebol e ao carnaval, tem permitido uma maior presença do Brasil no mundo”, comenta Anamaria Fadul, especialista em internacionalização midiática e ex-docente da USP. 

Por outro lado, fica a preocupação do olhar firmado e dos estereótipos construídos em torno do país, cuja unidade se baseia na junção de diversas culturas. “Não há dúvida de que muda a visão sobre o Brasil, ou então cria uma visão sobre ele. A questão é se essa visão é boa ou ruim, exata ou deturpada”, analisa o sociólogo Marcos Ferreira. 

Fundamental mesmo é reconhecer a criatividade nacional, a capacidade de se reinventar em torno de clichês já consagrados, que o público gosta de ver e rever. E gosta porque é bem feito, por pessoas que se dedicam ao ofício. Não há como negar o privilégio de ligarmos a TV e encontrarmos Fernanda Montenegro, ou ouvir aquele texto que o autor passa mais de um ano escrevendo, todos os dias, sem domingos ou feriados. Pelo menos de uma coisa podemos nos orgulhar e saber que lá fora eles também se orgulham de nós.

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