Além dos números: jornalismo e narrativa na cobertura da Covid-19

Por Jessica de Almeida.

17 de março, a primeira morte por Covid-19 no Brasil. 24 de março, 47 vítimas. 3 de abril, 327 mortes. 15 de abril, o número de mortes sobe para 1.557. 27 de abril, chega a 4.542. 1º de maio, 6.329 óbitos. 10 de maio: 10.670 óbitos. Em 55 dias o novo coronavírus mata quase 11 mil pessoas. 

Desde o meio de março, nos acostumamos com a contagem de vítimas de acordo com os boletins gerados pelos órgãos de saúde e divulgados pela imprensa. Não apenas a contagem de mortos, mas de leitos, de novos casos, de suspeitas de infecção e, até esquecemos, os de curados. A dinâmica é fria, essencialmente numérica, deslocando o enfoque humano das perdas e tornado triviais os impactos do que o jornal O Globo chamou de “a maior catástrofe sanitária em um século”. 

Para o pesquisador português José Manuel Santos, o caráter revelador de um macroacontecimento compreende-se pela injeção de sentidos num acontecimento que começa “em bruto”. E é quando a catástrofe atinge mais de 10 mil famílias que alguns veículos de comunicação e comunicadores se movimentam na direção da humanização, na tentativa de injetar sentidos num acontecimento que começou, de fato, em bruto. 

O programa “Fantástico”, da TV Globo, por exemplo, vinha exibindo, desde meados de abril, breves relatos de familiares que perderam filhos, irmãos, sobrinhos, netos e companheiros para o novo coronavírus. Mas na exibição do último domingo (10 de maio), atores e atrizes globais interpretaram relatos reunidos no memorial virtual Inumeráveis

O memorial também estampou a primeira página do jornal O Globo no Dia das Mães (10 de maio) com uma homenagem às pessoas por trás dos números. 

“Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”. É assim que o artista Edson Pavoni define o projeto Inumeráveis, criado com o empreendedor social Rodrigo Oliveira e lançado no fim de abril.

Bernadete de Souza Araújo, por exemplo, tinha 100 anos, morava em Niterói (RJ) e não é só um número. Agatha Lima, tinha 25, morava no Rio de Janeiro (RJ) e também não é só um número. 

É com o objetivo de transcender os números que o memorial retrata Bernadete como alguém que “em sua tenra infância carregou os irmãos no colo para, junto da mãe, fugir do sanguinário Lampião. Tia Bebé não constituiu família, mas dedicou sua vida à família. Incapaz de reclamar, Bebé vivia sorrindo e jorrando amor”. 

“Fazia enfermagem, trabalhava na UPA, uma profissional dedicadíssima. Kardecista, evangelizava crianças na comunidade e vivia revirando o armário para fazer doações. Agatha também era médium. Alguns dias antes de morrer, viu um cavalo branco saindo da parede. Deduziu que o cavalo significava partida, não imaginava que pudesse ser a sua”. É como Agatha é descrita. 

O memorial é alimentado por jornalistas, escritores e pesquisadores voluntários. O projeto disponibiliza um Manual para Pesquisadores Voluntários. Uma das orientações, a última delas, recomenda: “Ao fim pergunte-se: o falecido gostaria de ler esse texto?”. 

Em paralelo, a revista piauí publicou, na edição de abril, o diário de Chris Gallafrio Novaes: “Não tenho resposta para tudo”. Uma médica infectologista relata as idas e vindas de seis hospitais enquanto preservava o marido e os três filhos. 

“Após o almoço e até agora, meia-noite, não parei por um minuto. Segui do HC para o hospital do Butantan (…) Entre meus colegas, o receio maior é o de sofrer em uma UTI, com intubação e chance de pneumonia hospitalar, caso a doença evolua de maneira grave. É um receio que também tenho; pensar nisso não é agradável”. 

A narrativa potencializa os recursos jornalísticos, ultrapassando a cobertura tradicional, asséptica. Ficam, assim, questionados os paradigmas relacionados à objetividade da cobertura estatística da pandemia pelo Covid-19. Destacam-se o formato e a linguagem de diário, atípicos no reportar de crises sanitárias. E a perspectiva, desta vez não é a do repórter, mas “de pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano”, como defende a pesquisadora Cremilda Medina.  

Em Inumeráveis e na revista piauí, vemos não apenas o retrato dos fatos por intermédio da técnica, de uma visão meramente cientificista, mas elementos ligados e influenciados pela subjetividade, humanização. Da densidade dos números, a leitura se move para a densidade dos relatos. 

Talvez este seja um dos principais movimentos urgentes causados no pensar e fazer jornalísticos a partir do que a jornalista e professora Fabiana Moraes chama de Jornalismo de Subjetividade. O movimento de desestabilizar representações engessadas, estabilizadas, promovidas também pelo próprio campo noticioso.

Jessica de Almeida é mestranda em Comunicação Social pela PUC Minas.

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