Por Marina Maques da Silva
Inspirada pela inexistência de fotos de sua avó e de sua bisavó, a diretora Safira Moreira produziu o curta-metragem Travessia (2017), que além de ter sido amplamente premiado, foi exibido na abertura do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam em 2019.
O trabalho da diretora é, sem dúvidas, de grande potência imagética. Ao mesmo tempo, ele expõe e se desenlaça do apagamento histórico da população negra no nosso país. Trazendo para a cena um poema de Conceição Evaristo e fotografias antigas, coletadas pela própria diretora em feiras de antiguidade do Rio Janeiro, o curta, primeiramente, expõe, em carne viva, a crueldade que marcou a história negra que foi tecida no Brasil.
Moreira articula sua denúncia através de planos detalhes de uma fotografia que mostra uma mulher negra segurando um bebê branco no colo, com uma única descrição, no verso: “Tarcisinho e sua babá”. Trata-se de uma existência sublinhada pela ausência. A “apenas” babá é a mulher negra, sem nome, sem humanidade e sem voz, que nos mostra o enraizamento continuo dos papeis sociais subalternizados destinados a pessoas negras no país. A foto monocromática de 1963, apesar de antiga, também é dolorosamente recente. Ainda hoje, não se rompeu com o imaginário da servidão. Em pouco menos de dois minutos, o encontro entre a poesia e a imagem anônima provocado pelo curta revela a complexidade de um problema latente.
Em seguida, o filme muda de registro. Entra no quadro uma mulher negra e jovem, que traz em suas mãos outros retratos, dessa vez coloridos, de famílias negras. A essa imagem, sobrepõe-se um depoimento sobre o próprio ato de fotografar, e sobre como este tipo de registro era raro a esses grupos, pois custava caro. Com frequência, documentava-se apenas ocasiões especiais, como um casamento. E, então, observamos essa mesma mulher, performando poses que aludem às dinâmicas das fotografias antigas. Os planos mais fechados em closes e o fundo sem profundidade assinalam, aqui, o protagonismo dessa figura, uma mulher negra, em contraponto a um passado ancestral, marcado por apagamentos.
Por último, como em uma estratégia reparadora, testemunhamos um novo olhar, genuíno, oferecido pela diretora. As famílias negras do nosso tempo, altivas, propõe suas próprias encenações para a câmera. Tomam para si o que antes era um privilégio das tradicionais famílias brancas, apresentando-se em planos abertos e conjuntos, com imagens inteiras e bem enquadradas, que evidenciam um certo apego estético mais cuidadoso e que alinhavam perfeitamente a narrativa estabelecida pelo curta. Ao fundo, a canção Juana, da cantora caboverdiana Mayra Andrade entrega uma aura de afinidade, amor e ternura, acentuando os gestos de carinho e os sorrisos despreocupados trocados diante da lentes. Assim, o filme é finalizado.
A opção da autora em terminar a obra com um olhar mais positivo, e até mesmo libertador, capaz de abordar não apenas as mazelas, as dores e o sofrimento do povo negro, já tão cansado por causa dos incontáveis dessabores vividos até hoje, é um sopro de alivio e esperança na longa travessia que ainda temos a percorrer contra o apagamento racial. É como uma pequena luz que se acende timidamente ao final do túnel, mas que pela intensidade da escuridão, se torna um pouco mais forte e vívida.