Sobre amor: os personagens, a cultura e as imagens

Por Letícia S. Góis

Foto: Netflix/Divulgação.

Entergalactic: love will find us all, de Fletcher Moules, é um filme sobre amor; fala, então, sobre algo que sempre faltou às pessoas negras. Trata-se de filme protagonizado por um casal que, apesar de processos de racialização, completam-se. A obra é o acompanhamento visual do álbum de mesmo nome do cantor Kid Cudi e apresenta algo escasso no mercado cultural: a possibilidade de afeto e sucesso entre pessoas negras. Falamos de uma produção acalentadora que utiliza elementos estéticos marcantes e inovadores para oferecer uma experiência imersiva, engendrada a partir das impressões do artista.

Kid Cudi propõe reinventar a cidade de Nova York da mesma maneira que busca transformar discursos sobre a negritude. Entergalactic articula animação, cores e músicas para nos mostrar um lugar possível de se viver, de amar e de ser amado – uma utopia na nossa contemporaneidade. Porém, celebrar suas qualidades seria ignorar uma questão importante, foco da sua crítica: os imaginários construídos em torno do amor nos produtos culturais dominantes, que interferem nas nossas vivências concretas.

Foto: Netflix/Divulgação

A fórmula previsível da narrativa amorosa, exemplificada pelas comédias românticas hollywoodianas, é tão conhecida quanto perseguida. Convencemo-nos da sua verossimilhança: depositamos nossa fé no amor inesperado, que resiste, que permanece apesar das adversidades. O amor, porém, é uma construção, erigido por ideias, personagens e acontecimentos específicos. Produtos culturais como filmes, músicas e livros conseguem definir, a partir desse tipo de narrativa, quais sujeitos merecem viver histórias de amor.

Entergalactic dispõe-se a desafiar parâmetros estabelecidos e alçar ao protagonismo aqueles que nunca têm direito à magia romântica.  Ainda assim, é preciso pensar sobre os alicerces dessa magia. Possibilitar diegeticamente às existências negras “aquilo que nos foi negado” é um ato de ruptura, de revolução. Enxergar-se positivamente no espelho do cinema alimenta a concretude dos afetos possíveis. Mas romper com certos padrões não necessariamente estremece problemáticas maiores. Duas pessoas negras se amando e se fortalecendo na cultura audiovisual é um sonho conquistado que ajuda a semear relações reais. Mas legitimar o amor apenas entre um casal monogâmico, como acontece nas histórias respaldadas pela branquitude, é permanecer negando a multiplicação e a transformação radical do amor.

O amor como conhecemos, e como é representado, faz parte da estrutura de organização da nossa sociedade e estrutura da política dos nossos afetos, pautadas pela hierarquia, pela exclusão/exclusividade e pela competição. Em Entergalactic, essas dinâmicas estão presentes. Celebra-se o amor verdadeiro, único, em contraposição aos falsos, que representam uma possível ameaça para a relação central. Os planos, enquadramentos e outros elementos estéticos são responsáveis por evidenciar conflitos. A trajetória amorosa do personagem principal, Jabari, apesar de ser atravessada pelo dilema entre vida profissional e amorosa, acaba se resumindo à lógica da monogamia, responsável por ditar as dinâmicas relacionais a partir da dimensão da oficialidade e da exclusividade. Relacionamentos tornam-se um troféu social e definem aquilo que entendemos por solidão e plenitude.

Foto: Netflix/Divulgação

A monogamia, ao contrário do entendimento popular, não se resume ao simples arranjo relacional que proíbe relações múltiplas na vigência do casamento. Ela é, no entendimento da não monogamia política, um sistema responsável por manter uma lógica determinada de relação em todos os âmbitos, não só no romântico. É um sistema que mantém a hierarquia dentro de arranjos relacionais, um sistema que dita os corpos que merecem ser amados e que dita papéis sociais valorizados – por exemplo, a mulheridade incumbida de cuidar da casa, do marido, dos filhos. Esse sistema faz parte da estrutura da organização social e por isso é reproduzido em diversos produtos culturais. A lógica monogâmica é uma linha de pensamento que estigmatiza outras formas de engajamento mútuo para além do amor romântico. A individualidade e a complexidade do “ser” são esvaziadas.

Em Entergalactic, a beleza do encontro entre duas pessoas negras é certa, mas a competição e a impossibilidade do contato, do afeto e da amizade com outras pessoas é cruel para não dizer estratégico. Separar as afetividades em núcleos hierárquicos é uma estratégia que sustenta a lógica capitalista. Capitalizar afetividades torna a manutenção desse sistema extremamente fácil, já que tudo é tragado pela retórica da escassez.

Foto: Netflix/Divulgação

O sistema monogâmico é cisheteronormativo e branco. Pessoas racializadas, corpos dissidentes e sexualidades fora da norma não se encaixam no sistema. O amor vendido pela mídia não é fabricado para que essas pessoas se identifiquem, é criado justamente para diferenciar, para ser almejado e nunca conquistado. A reprodução desse amor hegemônico nos coloca, pessoas negras e dissidentes, em um campo de fraqueza. Tenta-se lidar com normatizações e com a afirmação da nossa própria natureza. Confrontamo-nos com o paradoxo do amor segregador, que não constrói coletividades e que objetiva domesticar a diferença. Exaltar o “sonho” da afabilidade para pessoas negras, partindo de uma perspectiva de um artista como Kid Cudi, é um grito de merecimento, mas um grito condicionado, que não se comunica com os outros sentidos. É um grito que não sabe que o amor pode ser abundante e que seria mais potente se pudesse dar espaço para a afetividade múltipla, descentralizada da relação sexual como medidora para uma relação superior, sem pódios que ditam qualidades. O amor seria maior se pudesse reunir pessoas e não as dividir em núcleos fechados.

O filme organiza uma dinâmica relacional tradicional tanto em seu roteiro, como na forma. A trilha sonora também reitera essa perspectiva, já que é a verdadeira inspiração para o enredo. A animação faz o trabalho de decodificar as relações. Observamos as ações dos personagens e, logo em seguida, deparamo-nos com a explicação de seus significados, às vezes com palavras escritas na tela, às vezes com planos tendenciosos, outras vezes com as próprias falas dos personagens. O filme é um excelente exemplo do que fazem as comédias românticas. funciona quase como um manual do se relacionar amorosamente, ingenuamente seguido por nós.

Um comentário em “Sobre amor: os personagens, a cultura e as imagens

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