Retrato de uma jovem em chamas: a escolha dos poetas

Imagem: Reprodução/Lilies Films

Por Julia Alvarenga.

O que é arte? Por toda estada dos seres humanos no mundo, a arte se fez presente, assim como questionamentos sobre sua existência. Em anos de estudos, teorias e artigos mostravam-se inconclusivos ao englobar a essência artística; até hoje, a arte viaja pelos ideais estéticos, formalistas e emocionais, sem nunca findar-se num conceito fechado. É da arte que trata o filme Retrato de Uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu), que nos apresenta um romance francês do século XVIII, quando o Neoclassicismo voltava a emergir na Europa, junto de suas normas academicistas, convenções formais e proporcionais. Marianne é uma pintora profissional submetida ao desafio de pintar, a partir de vislumbres sigilosos, um retrato da inexorável Héloïse, à pedido de sua mãe; dessa forma, a pintora sujeita-se à angústia da emoção.

Dirigido por Célice Sciamma e estrelado por Noémie Merlant e Adèle Haenel, o filme francês de 2019 obteve sucesso em premiações e conquistou o público ao redor do mundo. Distante do male gaze de diretores masculinos, o romance entre duas mulheres pôde ser abordado de forma saudável e respeitosa, divergindo de outras produções na indústria - como o desastroso Azul é a cor mais quente (Abdellatif Kechiche, 2013), que, além de hiperssexualizar suas personagens, também ocultou abusos em seu backstage. Sciamma, mulher e lésbica, montou uma produção quase completamente feminina e, cuidadosamente, construiu uma bela história de amor.Em seus primeiros minutos, Retrato de Uma Jovem em Chamas nos dá uma peça importante para toda sua construção: o olhar. Nas primeiras cenas, destacam-se os olhos atentos de jovens estudantes, em uma aula de pintura, que examinam minuciosamente o perfil humano para reproduzi-lo, então, perfeitamente em papel. Mais adiante, ao passar tempo com Héloïse, é isso que Marianne faz: a observa. É em um desses momentos, entretanto, que sua musa decide encarar de volta a pintora. É a primeira vez que seus olhares se cruzam, e a pintora parece se surpreender.

Marianne olha para Héloise
Imagem: Reprodução/Lilies Films
Hélouise olha de volta
Imagem: Reprodução/Lilies Films

O primeiro retrato de Héloïse é descartado por Marianne após a musa alegar que sentira falta de vida e de presença em sua própria imagem. A pintora explicou que não reproduz presenças e momentos passageiros, memórias. Essa seria, talvez, a escolha do poeta - foi o que ela disse, após a leitura da tragédia grega de Orfeu e Eurídice. Mesmo avisado de que perderia Eurídice ao encará-la, Orfeu o faz; ele escolhe a memória. A partir disso, Héloïse a estimula a pintar momentos. O mais marcante momento percebe-se depositado na tela que dá nome ao filme - sua musa, à noite, com fogo alastrando-se por seu vestido. 

Quadro intitulado “Portrait de la jeune fille en feu”.
Imagem: Reprodução/Lilies Films

O filme nos insere na trama Sujeito x Objeto. Posteriormente, ao ser pintada, Héloïse questiona a Marianne: “Se você olha para mim, para quem eu olho?”. Na dinâmica tema e pintor, as mulheres se aproximam, e, dessa maneira, o retrato final de Héloïse evolui; ultrapassando suas técnicas, Marianne cede à emoção. Nesse momento, a quebra com o formalismo artístico une-se ao abandono também das convenções sociais, quando duas mulheres passam a viver um amor fora de padrões estipulados pela sociedade. 

Retrato de Uma Jovem em Chamas é um filme sincero a respeito da realidade feminina, sem medo de mostrar, por exemplo, pelos corporais ou demais tabus femininos. Além disso, a realidade desejada por Sciamma expande-se à construção completa do longa. Sem trilha sonora, a diretora teve a intenção de inserir os espectadores, realisticamente, no mundo de seus personagens. É possível ouvir os tecidos dos vestidos, o pincel nas telas e o silêncio - esse, tão importante para o impacto estrondoso da música quando ela finalmente se irrompe. O pictórico do filme abraça os quatro elementos: o ar nos ventos dos penhascos, a água no oceano, a terra nas rochas e gramados e, principalmente, o crepitar do fogo, sempre presente - de todos os elementos, o mais avassalador.

Héloise usa panos por causa do vento
Imagem: Reprodução/Lilies Films

Protagonista na mata
Imagem: Reprodução/Lilies Films
Héloise prestes a se banhar no mar
Imagem: Reprodução/Lilies Films
Vestido de Héloise em chamas
Imagem: Reprodução/Lilies Films

O filme de Céline Sciamma nos entrega um final em três tempos: primeiro, em uma despedida remetente ao mito de Orfeu; Heloïse lança um último relance à sua amada para manter na memória. Depois, em uma exposição de arte, com as interpretações de Marianne do mesmo mito,[ÉS1]  e seu encontro com um retrato de Héloïse, que revela que a pintora nunca fora esquecida. E então, o último golpe intrínseca e intensamente emocional. Pela primeira vez, uma música instrumentada se faz ser ouvida no longa-metragem, e trata-se da formidável Storm, de Antonio Vivaldi. Enquanto o volume desconcerta os espectadores, Marianne vê Héloïse em um teatro, inadvertidamente, por uma última vez; dessa vez, elas não são mais sujeito e objeto, ou tema e pintor: são duas mulheres que compartilharam a mesma história de amor. Héloïse nunca a olha de volta, e Marianne nunca desvia o olhar. Ela fez, também, a escolha dos poetas.

Por mais que os séculos de estudos tenham provado a impossibilidade de definição do conceito artístico, é possível dizer, sem maiores justificativas, livre de refutações: dentro de sua própria tragédia grega, Retrato de Uma Jovem em Chamas é uma obra de arte.

Retrato de uma Jovem em Chamas (Portrait de la jeune fille en feu) – França, 2019

Direção: Céline Sciamma

Roteiro: Céline Sciamma

Elenco: Noémie Merlant, Adèle Haenel, Luàna Bajrami, Valeria Golino.

Duração: 2 horas e 02 minutos.

Julia Alvarenga é monitora do CCM e graduanda em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.



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