Desvendando a narrativa na cultura digital com Vera Follain

Por Gabriela Barbosa.

Para refletir e enriquecer o debate sobre narrativa e cultura contemporânea, o grupo de pesquisa Mídia e Narrativa recebeu, nos dias 17 e 18 de maio, na PUC Minas, campus Coração Eucarístico, a professora doutora Vera Lúcia Follain de Figueiredo da PUC Rio, que atua no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e também no Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, do Departamento de Letras da mesma instituição.

A partir dos textos indicados para leitura prévia (referenciados abaixo), Vera Follain começou a conversa com uma definição sucinta de narrativa: uma sequência de ações e de experiências vividas por personagens reais ou imaginários que se encaminha para uma conclusão. O ato de narrar é um recurso que organiza a vida em uma linearidade lógica, além de uma forma de imprimir sentido ao mundo e ao caos dos acontecimentos. Portanto, a matriz narrativa é a concatenação dos fatos no tempo; é a lógica a serviço da temporalidade. Temporalidade esta que se reformula com as novas tecnologias que, além de vestir uma roupagem mais dinâmica e incessante, ainda recusa a fórmula de linearidade propagada pela tradição.

A professora Vera Follain destacou a presença determinante de um discurso em primeira pessoa em grande parte das produções culturais atuais — não só na literatura, como também no audiovisual (filmes, séries e, inclusive, documentários). Esse fator seria consequência direta de algo que começou durante a Revolução Francesa e a Comuna de Paris, período no qual o escritor burguês entendeu que a sua narrativa não falava por todos, de acordo com György Lukács em seu “O Romance Histórico”, obra publicada pela primeira vez em 1936-1937.

O gênero da narrativa serve como uma marcação temporal. É possível perceber que o lugar de fala da primeira pessoa, dos bastidores e a utilização da metalinguagem em produções contemporâneas é uma fórmula utilizada para desvelar a ilusão de transparência. Filmes, documentários e reportagens onde o autor se mostra e questiona sua própria posição no mundo demarcam a sua voz como apenas mais uma das várias presentes no contexto. Ao sair da pretensão da imparcialidade, o homem comum vem à cena e a narrativa se localiza na opacidade, explicitando o processo de tessitura da história.

Passeando por autores desde Aristóteles e Santo Agostinho, até chegar a Umberto Eco, Jesús Martín-Barbero, Michel de Certeau e Pierre Bourdieu, por exemplo, Follain discute os conceitos da narrativa ao longo dos séculos. A oralidade popular que conta com a espontaneidade de quem está contando, suas idas e vindas e imprevisibilidades, culmina na sua versão mais estruturada e perfeita, segundo Aristóteles: a escrita. Esta última, considerada alta narrativa, aparece como uma maneira da burguesia se distanciar do popular.

Entretanto, para Certeau, a escrita não matou a tradição da oralidade. Há uma apropriação da tradição popular por parte da cultura de massa, reformulando-a como um produto cultural. Citando Martín-Barbero, a professora Vera Follain afirma que a telenovela aproveita as temporalidades, os temas que estão em voga no mundo, para concatenar sua narrativa, mantendo um conteúdo atual e uma matriz que conversa diretamente com a emoção. O melodrama, então, traz a narrativa popular da oralidade para a televisão e, ativando a memória popular, permeia o imaginário para auxiliar na sobrevivência do cotidiano da pessoa comum.

A ficção encontrada nas novelas e no melodramático é um instrumento político democrático e perturbador da ordem. Contudo, para Follain, há uma valorização do lugar de fala do “eu” em detrimento da narrativa ficcional, colocando o primeiro em um palco e o segundo para detrás das cortinas. O movimento de deslocamento de um lugar para o outro (para pensar o outro), que caracteriza fundamentalmente a ficção, está perdendo a sua intensidade. Esse recuo, para a professora, se deve também à questão dos lugares de fala; apesar de se tratar de uma questão legítima, uma de suas consequências é a valorização excessiva do documental sem espaço para o lúdico ficcional.

Para contrapor a linearidade citada ao longo da tradição narrativa, Follain comenta os aspectos da cultura de banco de dados proposta no texto de Lev Manovich. O mundo da escrita está associado ao tempo como sucessão — e a história é gerada nesse encadeamento. Entretanto, cada vez mais apreendemos o mundo como uma coleção, e não ações sequenciadas. O banco de dados aparece como uma lista de itens desorganizada, enquanto a narrativa criaria uma trajetória a partir de eventos sequencialmente. A web carrega, em sua natureza, características antinarrativas, possuindo arquivos e páginas que podem sempre ser editadas, recusando-se a encerrar o roteiro. Dessa forma, a tecnologia veste uma roupagem incessante e infinita, recusando uma forma tradicionalmente linear e se tornando uma coleção interminável de arquivos de dados.

As novas mídias emergem como adversárias da narrativa, reprogramando, inclusive, nossa experiência em relação ao mundo. A proliferação das micronarrativas derrubou a tradicional forma cultural do romance e do cinema, contando histórias que não possuem um desenvolvimento em sequência, mas que possuem, de fato, fragmentos de discursos individuais; algo que Manovich considera uma forma simbólica da era do computador.

Assim, Vera Follain afirma que a tecnologia propicia um declínio da narrativa tradicional como forma de apreensão do mundo. A consequência da narrativa contemporânea — alavancada pelas novas mídias — é um agrupamento dessas pequenas histórias cotidianas que negam o heroísmo dos romances tradicionais, que primam pelo ponto de vista em primeira pessoa.

Ao encerrar seu curso, a professora leu um poema do escritor brasileiro José Paulo Paes transcrito abaixo:

Sobre o Fim da História
José Paulo Paes

A pólvora já tinha sido inventada, a Bastilha posta abaixo
e o czar fuzilado quando eu nasci. Embora não me res-
tasse mais nada por fazer, cultivei ciosamente a minha
miopia para poder investir contra moinhos de vento.

Eles até que foram simpáticos comigo e os de minha ge-
ração. Fingiam de gigantes, davam berros horríveis só
para nos animar a atacá-los.

Faz muito tempo que os sei meros moinhos. Por isso os
derrubei e construí em seu lugar uma nova Bastilha.
Vou ver se escondo agora a fórmula da pólvora e ar-
ranjo um outro czar para o trono.

Quero que meus filhos comecem bem a vida.

Textos indicados por Vera Follain para o curso:

RANCIÈRE, Jacques. Paradoxos da arte política. In: RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012.
MANOVITCH, Lev. O banco de dados. Revista ECO-PÓS, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, 2015.
FIGUEIREDO, Vera Lúia Follain de. A narrativa sob suspeita: primeira pessoa e declínio da perspectiva utópica. In: OLIVEIRA, Maria Rosa Duarte de; PALO, Maria José (orgs.). Impasses do narrador e da narrativa na contemporaneidade. São Paulo: Editora EDUC, 2016.

Algumas obras citadas pela professora ao longo do curso:

Livros:

  • O Romance Histórico, de George Lukács.
  • O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas.
  • A Partilha do Sensível, de Jacques Rancière.
  • O Espectador Emancipado, de Jacques Rancière.
  • O Fio Partido, de Jacques Rancière.
  • A Loteria da Babilônia, de José Luis Borges.
  • Educação Estética do Homem, de Friedrich Schiller.
  • O Sol na Cabeça, de Geovani Martins.
  • Maíra, de Darcy Ribeiro.
  • A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord.
  • Obra Aberta, de Umberto Eco.
  • O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, de José Luis Borges.

Gabriela Barbosa é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC Minas e graduada em Publicidade e Propaganda. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa.

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