Queerbating: eles querem seu dinheiro, não quem você é

Por Victoria Silva Rodrigues. É inegável a má interpretação, processos de estereotipagem e marginalizações de determinadas parcelas da sociedade nas representações midiáticas e em diversos produtos culturais. Filmes, séries, programas de televisão e rádio foram responsáveis por reforçarem preconceitos que até hoje estimulam a constante repulsa a certos grupos, afastando-os de sua devida visibilidade e de seus direitos. Logo, a mídia pode extrapolar sua missão de entreter e pode, também, buscar remediar injustiças sofridas por esses sujeitos através de conteúdos cada vez mais inclusivos. Porém, esta realidade ainda permanece longe de ser alcançada.

Em meados da década de 1930 grandes produtoras hollywoodianas criaram o Código Hays (oficialmente Motion Picture Production Code, em português: Código de Produção de Cinema), um conjunto de normas que ditavam aquilo que era moralmente aceito ou não nos filmes lançados nos Estados Unidos, na época, o maior produtor e distribuidor de produtos audiovisuais. Como reflexo daquilo que era aceito como “moral”, personagens LGBT, por exemplo, não eram incluídas de forma explícita. Personagens que possuíam algum atributo que fugisse da heteronormatividade (ou seja, qualquer rasgo que foge o padrão da heterossexualidade) eram comumente enquadrados como vilões. É o caso de The Maltese Falcon (1930) (“O Falcão Maltês”) clássico noir de John Huston. O vilão Joel Cairo, interpretado por Peter Lorre é mais “afeminado”, não representava de forma concreta os padrões de masculinidade aceitos naquela época, que em contrapartida estão escancarados na caracterização de Sam Spade, herói protagonizado por Humphrey Bogart: um homem destemido, misterioso, galante e “durão”. Frequentemente, havia este contraste entre antagonista – caracterizado com aquilo que era considerado desvios da moralidade da época – e o protagonista, encarnando o ideal a ser aceito e seguido.

O Código Hays perdurou até 1968, ano em que a Motion Picture Producers and Distributors of America (em tradução livre, Associação de Cinema dos Estados Unidos) passou a adotar o sistema de classificação indicativa. Porém, resquícios de tal advento perpetuam até os dias de hoje, inclusive em cartoons, os chamados desenhos animados, voltados para o público infantil. Em The Powerpuff Girls (1998) (As Meninas Super Poderosas), temos o vilão Ele, um diabo com a pele avermelhada, garras e orelhas pontudas. Seu cabelo é rosa e usa botas de saltos altíssimos. Com a voz ambiguamente aguda que muitas vezes torna-se grave, o personagem possui uma caracterização totalmente andrógina. Porém, não há esclarecimento de seus realizadores de forma mais profunda sobre este personagem.

Na contemporaneidade, vestígios do Código Hays são visíveis em um artifício utilizado por muitos escritores e roteiristas, nomeado como queerbating. Do inglês queer (termo antigamente utilizado de forma pejorativa e que atualmente foi ressignificado pela comunidade LGBTQ para designar um movimento político e epistemológico que contesta a heteronormatividade) e bait (“isca”, em tradução livre), o termo queerbating é uma estratégia midiática utilizada nos mais diversos meios de entretenimento para atrair o público que foge do padrão cis-heteronormativo. É concretizada quando as produções deixam de forma implícita a possibilidade de dois personagens do mesmo gênero se relacionarem de forma afetiva e amorosa. Entretanto, tal possibilidade nunca é concretizada, tampouco verbalizada pelas produções e seus realizadores.

Um dos maiores exemplos de queerbating é a série britânica Sherlock, da BBC, baseada nas histórias do detetive Sherlock Holmes escritas por Sir Arthur Conan Doyle. Fãs da série propagam em redes sociais suas teorias sobre a possível existência de um amor romântico entre Sherlock e seu amigo e companheiro de apartamento, Watson. Existem vários  vídeos no YouTube explicitando cenas da série em que todos os elementos da narrativa culminam em sugestões que corroborem com a possibilidade real de existir atração entre ambos: desde a trilha sonora até o enquadramento de câmera, das falas sugestivas até a dramatização dos atores.

 

E, apesar de o co-criador da série Steven Moffat ter dito em entrevista que o personagem Sherlock “não é gay e nem hétero”, e de o ator Martin Freeman (Watson) ter dito em outra que ele e Benedict Cumberbatch (Sherlock) nunca terem feito uma cena com o intuito de Watson e Sherlock parecerem apaixonados, fãs do intrigante detetive continuam a pontuar que as cenas da última temporada permanecem insinuando e brincando com a possibilidade de os dois serem de fato um casal. Logo, mesmo tentando afastar as denúncias de queerbating, os produtores continuam – por motivos de visibilidade e publicidade – a flertar com o imaginário do público.

O problema deste artifício encontra-se na desonestidade da promessa de haver uma representatividade para aqueles grupos que são marginalizados, que sentem-se atraídos por estes conteúdos na esperança de encontrarem representação. Entretanto,  já que as tramas versam sobre temas irreais e não são devidamente aprofundadas, acabam por não refletir a dimensionalidade destes indivíduos, o que apenas contribui para a conservação dos estereótipos arquitetados. O simples fato de não pontuar claramente a sexualidade de um personagem que não seja heterossexual já invisibiliza e banaliza a existência daqueles que fogem de uma perspectiva heterocentrada, dificultando a luta deste grupo normativamente desviante na produção cultural hegemônica.

Ademais, esta artimanha vulgariza e diminui histórias reais apenas para atraírem um público específico, aumentando seu alcance e, por consequência, gerando uma arrecadação maior das bilheterias; ou então um hype em sua série, difundindo propaganda e divulgações. No final de tudo, é uma questão de rendimento: quanto mais pessoas verem seu produto, mais dinheiro você faz.

Todo produto cultural é reflexo de seu tempo. Carregam miríades de significados, e nós, como telespectadores, inconscientemente encontramos de alguma forma uma aproximação com aquilo que consumimos. Por isso, desde filmes e séries, HQ’s e video games, até novelas e livros, levam consigo uma responsabilidade fundamental em trazer personagens com histórias, conflitos e lutas que representam e espelham aquilo que nos é tangível na vida real. Logo, não haver uma representabilidade positiva é um empecilho no processo de entendimento do indivíduo em relação ao seu lugar na sociedade e também  com ele mesmo: a autoaceitação. Quando a mídia não promove este tipo de suporte para estas pessoas, colabora com a fragilização da sua autoestima, pois o bombardeamento de informações que os excluem – e muitas vezes, vão contra sua existência – é cotidiana, silenciosa e de forma aparentemente inofensiva.

Uma das formas para remediar esta disparidade é dar oportunidade às pessoas destes grupos no rol de diretores, escritores, roteiristas, produtores e realizadores de conteúdos. Que se abram espaços em grandes produções para que mulheres, negros, homossexuais e transsexuais onde eles possam finalmente, com seus repertórios e realidades únicas, fazerem catarse de suas experiências de forma honesta e íntegra. E assim, aproximar a arte daqueles que necessitam de representação e mostrarem àqueles que não os compreendem que, no final do dia, somos todos humanos com complexidades e necessidades meramente humanas.

Victoria Silva Rodrigues é monitora do Centro de Crítica da Mídia e graduanda em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.

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