Pós-Terror: A “inflação teórica” no uso do prefixo

Por Frederico Dias.

Foto: Divulgação/Diamond Pictures

Em julho de 2017, o escritor e resenhista especializado em cultura Steve Rose, do The Guardian, popularizou o termo pós-terror para caracterizar alguns filmes do gênero produzidos no decorrer da última década. No texto intitulado How post-horror movies are taking over cinema, que discute a obra Ao Cair da Noite (It Comes at Night, 2017), do diretor Trey Edward Shults, Rose tenta delimitar o que é e o que não é, de fato, pós-terror. Contudo, nesse exercício de conceitualização, surgem algumas incongruências que merecem destaque a fim de se refletir sobre a necessidade ou não do uso do prefixo. 

Antes de prosseguir, é importante ressaltar que o termo ganhou projeção sendo adotado por diversos críticos, pesquisadores e fãs do gênero que buscam um novo meio de catalogar um estilo supostamente novo e emergente no cenário cinematográfico. Contudo, essa nova categoria tem como efeito a hierarquização das obras, pois, como postula Rose, os expoentes do pós-terror possuem histórias mais complexas, sutis e bem dirigidas, ao contrário dos filmes puramente de terror, tido como superficiais, óbvios e até, por vezes, grosseiros em sua concepção. 

Esse é precisamente um dos argumentos apontados por Rose em seu texto, que inicia a conceitualização com uma afirmação reducionista de que o cinema de horror é um lugar seguro devido às convenções e aos clichês comumente empregados. Essa afirmação me parece equivocada, pois, assim como em qualquer outro gênero, existem as tradições ao mesmo tempo que existem autores dispostos a romper com elas. A jornada do herói, de Joseph Campbell, com todo o seu aparato e regras, é constantemente empregada em filmes hollywoodianos. Não obstante, aqueles que ousam quebrar com a tradição, como fez Nicolas Winding Refn em Drive, de 2011, não são chamados de “diretores de pós-ação” e nem deveriam ser. 

Para construir seu conceito de pós-terror, Rose primeiramente define o que é terror de um ponto de vista estético e estrutural. Ele afirma que entre as estratégias e características mais usadas do gênero estão o constante uso de jump scares; uma narrativa mais voltada para ação e violência e não para a personagem; a literariedade do enredo, que não se ocupa de construções metafóricas ou alegóricas; e, por último, a presença de monstros, fantasmas, vampiros ou entidades sobrenaturais, seguindo a tradição popularizadas pelos filmes de monstro do estúdio Universal das décadas de 1930 a 1950, como Drácula (1931), Frankenstein (1931), A Múmia (The Mummy, 1932), entre outros que compartilhavam inovador multiverso dos monstros.

Já o pós-terror irá se constituir no oposto das proposições anteriores. Os jump-scares cessam e, em seu lugar, o horror atmosférico prevalece, privilegiando a construção de uma mise-en-scène mais elaborada em conjunto com os elementos não específicos do cinema (música, design de produção, etc.) em congruência para ditar o tom da obra. David Church abre seu livro Post-Horror: Art, Genre and Cultural Elevation (2021), comentando justamente sobre um desses elementos não específicos, a música, e sobre seu uso no filme A Bruxa (The Witch, 2015), de Robert Eggers, um dos precursores do pós-terror pensado por Rose. Church discute a importância da música na obra de Eggers e enfatiza o uso do Apprehension Engine ou, em uma tradução livre, “Motor de Apreensão” ou “Máquina de Apreensão”, um instrumento – ou conjunto de instrumentos, como descrito pelo criador em entrevista (POWER, 2019) – pensado por Mark Korven. A “máquina” tem como objetivo criar sons metálicos e desconfortantes que ajudam a compor o clima pesado da obra. O mesmo instrumento também foi usado posteriormente no filme subsequente de Eggers, O Farol (The Lighthouse, 2019), com a mesma função. 

Foto: Divulgação/Universal Pictures

Church (2021), mesmo que critique a escolha do prefixo proposto por Rose, o ajuda a traçar as questões estéticas de composição dessas obras. Fazendo uso de um termo mais apropriado para a discussão, o teórico classifica os filmes desse ciclo como produções minimalistas por se tratarem de narrativas em menor escala (centradas em uma personagem ou em um pequeno núcleo e seus respectivos conflitos interiores), cujo o sentido não é recebido passivamente pelo espectador. O espectador, nesses filmes, precisa ser um agente ativo na recepção, interpretando-os de acordo com as regras dispostas pela própria obra e seu realizador. Esse movimento de recepção dos filmes classificados como pós-terror é semelhante àquele descrito por Wolfgang Iser em O Jogo do Texto, em que o importante teórico da estética da recepção diz que os “autores jogam com os leitores” (ISER, 2002, p. 107), no sentido de o leitor participar ativamente na construção do sentindo, respeitando as regras estabelecidas pelo autor, ou no caso do cinema, o diretor. 

Dito isso, percebe-se que Rose discute questões estéticas do gênero para definir seu novo conceito, perguntando-se, hipoteticamente, o que aconteceria se as convenções do cinema de horror fossem deixadas de lado. Neste sentido, ele classifica o pós-terror como um novo subgênero emergente, o que é problemático devido à natureza de ruptura que o prefixo carrega quando colocado diante de um movimento estético. Aqui não há ruptura alguma, o que é provado pelo próprio autor ao elencar algumas obras de gerações passadas que fazem precisamente o mesmo movimento, como O Iluminado (The Shining, 1980), de Stanley Kubrick; a trilogia do apartamento de Roman Polanski, que é constituída por Repulsa ao Sexo (Repulsion, 1965), Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968) e O Inquilino (Le Locataire, 1976); e Inverno de Sangue em Veneza (Don’t Look Now, 1973), de Nicolas Roeg. 

A fim de ilustrar, toma-se o filme Repulsa ao Sexo, dirigido por Roman Polanski, como exemplo. A narrativa acompanha uma mulher, Carol. Depois de sua irmã e colega de quarto viajar com o amante, ela passa a sofrer com alucinações dentro de seu apartamento. O motivo para essas alucinações não está explicitado na obra, contudo, há pistas dispostas no filme para que o espectador desenvolva sua própria leitura. Pode-se levantar inúmeras hipóteses acerca desse filme, sobre a representação do apartamento que se deteriora e a relação que isso tem com a protagonista, a forma como Carol é tratada pelos homens e como isso a afeta psicologicamente, e também como a protagonista enxerga a própria irmã e a chefe, duas fortes figuras maternas. Há diversos caminhos interpretativos a serem seguidos na obra, porém ela não se compromete com nenhum deles encerrando a discussão. A respeito da estética, não há jump scares e o terror é inteiramente construído a partir da perspectiva da protagonista, como se a direção mergulhasse em sua subjetividade. 

Cabe ressaltar ainda que não são apenas as obras citadas por Rose que estão esteticamente alinhadas com a noção do pós-terror. Outras que poderiam ser citadas para compor esse corpus são: Hausu (1977), de Nobuhiko Ōbayashi; Os Olhos Sem Rosto (Les Yeux Sans Visage, 1960), de Georges Franju; Os Filhos do Medo (The Brood, 1979), de David Cronemberg; Eraserhead (1977), de David Lynch; Violência Gratuita (Funny Games, 1997), de Michael Haneke; May (2002), de Lucky McKee, entre muitos outras e por motivos diversos. 

Contudo, para justificar a exclusão desses filmes do que é chamado de pós-terror, mesmo havendo inúmeras semelhanças estéticas na composição das obras, Rose amplia o conceito e cita a importância do baixo orçamento para que um filme seja enquadrado eu seu novo subgênero. Portanto, a argumentação segue por uma nova direção, podendo-se, assim, fazer a afirmação de que, na concepção de Rose, são duas as qualidades que configuram o pós-terror: a qualidade estética e a questão do baixo orçamento. 

Ele argumenta que os filmes do terror do passado, mesmo aqueles que esteticamente se enquadram no que é entendido por pós-terror, não o são por estarem inseridos em um contexto de grandes estúdios e grandes orçamentos, o que não é totalmente verdade. Apesar de alguns deles possuírem, sim, grandes orçamentos, como é o caso de O Iluminado, a maioria dos filmes citados não possuem valores exorbitantes em suas produções.

Ademais, há de se levar em consideração também que o advento da tecnologia diminuiu consideravelmente o valor de uma produção cinematográfica e fez com que a aquisição de bons equipamentos se tornasse mais acessível. A simples transição da película para o formato digital é um exemplo dessa maior facilidade em se produzir. Com efeito desses avanços tecnológicos, há um aquecimento do cinema independente, não apenas no gênero terror, mas de todo o horizonte da indústria. Filmes como Primer (2007), Coherence (2013) e Another Earth (2011), são exemplos de filmes que não estão no gênero terror e que foram produzidos com baixíssimo orçamento fora do circuito convencional, de forma independente e altamente autoral. Outra coincidência entre esses três filmes é o fato de serem todos de ficção científica e de que, de alguma forma, subvertem as expectativas em relação ao gênero e apresentam narrativas mais contidas e voltadas às personagens. Ora, esses filmes, então, não deveriam receber a alcunha de “pós-sci-fi”?

Foto: Divulgação/Oscilloscope

Resta, então, refletir sobre o porquê de tamanha adesão no uso desse conceito. David Church discute algumas questões que direcionam para a resposta. O autor fala sobre o estigma que possuem os filmes de terror, historicamente entendidos como inferiores pela crítica e comumente deixados de fora dos festivais e premiações por haver um grande número de detratores do gênero (CHURCH, 2001, p. 2-4). O termo pós-terror, portanto, parece ser uma estratégia por parte da crítica para distanciar os tidos “filmes de boa qualidade” dos de “má qualidade”, que seriam aqueles que fazem uso de jump-scares e dos demais clichês do gênero. 

Todavia, o próprio Church (2001) adverte a respeito do uso desse termo, que, segundo ele, é mais comum entre a crítica britânica, enquanto nos Estados Unidos é usado o seu equivalente, “terror elevado” ou elevated horror (p. 3). Apesar de admitir que a versão norte-americana é mais apropriada por não pressupor uma ruptura, Church pondera sobre o pedantismo que carrega a nomenclatura, pois seu uso automaticamente cria uma relação hierárquica entre os diferentes tipos de abordagem criativa do gênero.

Aqui cabe ressaltar que o tipo de abordagem estética, mais ou menos metafórica, por si só, não é capaz de tornar um filme bom ou mau. Contemporaneamente, nas discussões acerca do terror no cinema, existem duas produtoras que exemplificam bem essa polarização, sendo elas A24, com um estilo mais autoral e alegórico, e a Bloomhouse, seguindo uma linha mais comercial e, de certa maneira, convencional. Apesar de, em sua maioria, a abordagem estética das duas produtoras/distribuidoras serem diferentes uma da outra, ambas operam com o mesmo gênero por não haver a ruptura na forma e apresentam obras diversas, possuindo bons e maus títulos em seus catálogos. 

Beatriz Sarlo (2005), em seu livro Tempo Passado, reflete sobre questões relativas à memória e à construção de identidade. Em certo momento da obra, a teórica critica o conceito de pós-memória devido a pouca necessidade dele, uma vez que o rico conceito de memória é capaz de dar conta, por si só, do que o termo pós-memória busca cobrir. Ela afirma que o “gesto teórico parece então mais amplo que necessário. Não tenho nada contra os neologismos criados por aposição do prefixo pós; pergunto apenas se correspondem a uma necessidade conceitual ou se seguem um impulso de inflação teórica” (SARLO, 2005, p. 95). 

A mesma crítica pode ser trazida para o contexto do cinema de horror, pois o movimento é semelhante. O emprego do termo parece muito mais uma estratégia argumentativa e “inflação teórica” dos detratores do gênero do que uma real necessidade teórica-conceitual. No fim, o emprego desse termo soa como uma tentativa de se buscar em algum tipo de construção mais elevada que encontre respaldo em fontes mais aceitas pela crítica. Church (2021) cita, por exemplo, que ao invés dos filmes do suposto pós-terror seguirem a linha tradicional de sustos e seres sobrenaturais que historicamente remetem ao terror no cinema realizado por culturas anglo-americanas, ele se pauta em questões que se assemelham mais com a narrativa fantástica estudada por Tzvetan Todorov (p. 16). Desse modo, a associação do gênero não é mais feita com uma fonte cultural estigmatizada pela crítica, como são os monstros da Universal do século passado ou os sustos que vêm de fontes não-diegéticas, mas sim, com estruturas narrativas de autores consagrados da literatura, como Gabriel Garcia Marquez, Franz Kafka ou Guy de Maupassant, elevando o gênero a um patamar superior perante a crítica, mesmo que isso custe fechar os olhos para uma infinidade de obras que já fazem esse movimento minimalista e subjetivo desde os tempos de Fritz Lang e do expressionismo alemão.

Frederico Dias é graduado em Letras (licenciatura Português/Inglês) pela PUC Minas. Atualmente é bolsista da CAPES no programa de Mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa também pela PUC Minas.

REFERÊNCIAS 

CHURCH, David. Post-Horror: Art, Genre and Cultural Elevation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2021.

ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In JAUSS, Hans Robert. et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção; coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 105-118.

POWER, Tom. How composer Mark Korven created the incredibly eerie sound for The Lighthouse. Youtube, dez. 10, 2019. Disponível em: <https://youtu.be/vImARtEhTw8> Acesso em: set. 2021.

ROSE, Steve. How post-horror movies are taking over cinema. The Guardian, Londres, 6 de jul. de 2017. Disponível em: <https://www.theguardian.com/film/2017/jul/06/post-horror-films-scary-movies-ghost-story-it-comes-at-night> Acesso em: set. 2021. 

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. 

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