O realismo pulsante de Andrea Arnold

Por Gustavo Fernandes.

Foto: Reprodução/Universal Pictures

Ao longo das últimas décadas, diversos cineastas ascenderam mundialmente devido à realização de obras de cunho realista. O realismo por si só, no entanto, vai na contramão de diversos mandamentos da sétima arte. Essa divergência ocorre pois, comumente, a ficção necessita de fabulação para operar de modo instigante para o público. Consciente disso, a cineasta britânica Andrea Arnold desafia paradigmas ao construir sua obra através da mediação entre o realismo e a estilização cinematográfica, fabulando sobre a crueza do cotidiano.

É interessante como Arnold parece mais interessada em explorar os desdobramentos emocionais dentro dos universos que constrói do que de fato expor tramas realistas. Afinal, a obra da diretora apresenta recortes específicos de gênero, quase sempre promovendo um diálogo entre o drama e o suspense. O que parece mover o cinema de Arnold não é o realismo ordinário, calcado na abordagem observacional do cotidiano. O que de fato soa como o motor narrativo da cineasta é a abordagem dos extremos vivenciados por seus personagens, quase sempre em busca de autoconhecimento e autorrealização.

Seus curtas-metragens são, em sua maioria, sobre personagens à beira de catarses – ou, pelo menos, ansiando por algum momento de libertação. Esse eixo temático é estendido também aos longas-metragens da diretora. Seu curta-metragem de maior notoriedade, Vespa (2003), recebeu o Oscar de Melhor Curta-metragem de Ficção e pode ser visto como uma síntese do que seria a filmografia da diretora: um relato cru sobre os extremos impostos pela vida. A fabulação na obra da cineasta ocorre justamente por meio de momentos de contato com circunstâncias que, apesar de soarem “exageradas”, não são mais que eventos palpáveis que podem ocorrer na vida de qualquer um.

Tanto Vespa quanto seus longas-metragens Aquário (2009), Morro dos Ventos Uivantes (2011) e Docinho da América (2016) apresentam histórias centradas em personagens à beira do colapso. Outro traço comum da diretora é utilizar atores sem experiência prévia em seus filmes. Boa parte de seus elencos é composta por atores encontrados pela própria diretora em festas, ruas, estações de metrô (como a própria Katie Jarvis, protagonista de Aquário) e outros lugares inusitados. Esse traço característico de Arnold evidencia fortemente seu interesse pela naturalidade das interpretações – sempre viscerais dentro de seus respectivos contextos.

A naturalidade das interpretações extraídas dos atores pela diretora advém de outro hábito peculiar: a construção do enredo no próprio set de filmagens. Arnold não é adepta do uso de roteiros, marcações e diretrizes estruturais pré-estabelecidas. A cineasta valoriza a catarse momentânea proporcionada pelo improviso e pela interação dos atores entre si no próprio set de filmagens. Portanto, é comum que atores profissionais se surpreendam ao trabalharem com Arnold, assim como ocorreu com Riley Keough, uma das protagonistas de Docinho da América.

“Eu nunca sabia o que ela (Arnold) estava pensando. Eu não recebi um roteiro ou descrição de personagem, mas ela tinha na cabeça o que ela queria. Quando fui chamada para o papel, tivemos (Keough e Arnold) uma conversa sobre quem minha personagem era. A partir disso, meu papel foi ser fiel àquilo, não importa o que o roteiro jogasse pra mim.”

Foto: Reprodução/Universal Pictures

A própria maneira como Arnold enquadra e filma seus personagens dialoga com sua proposta de extremos. Sua câmera, extremamente tremida e quase sempre com uso de baixíssima profundidade de campo (o que dá à imagem um fundo bastante desfocado), não esconde seu anseio pela estilização. Tal atributo, no entanto, passa longe de destoar da abordagem emocional proposta pela cineasta. 

“Nós estávamos totalmente no escuro e Andrea estava escrevendo nossas vidas por nós. Foi como se tivéssemos alguém escrevendo nosso futuro, dia a dia. Ela estava constantemente mudando as coisas dependendo das dinâmicas.”

Foto: Reprodução/Universal Pictures

O realismo de Andrea Arnold é, definitivamente, singular. Em seu novo filme, Cow, estreado no Festival de Cannes em 2021 e disponível no MUBI, a diretora resolveu se aventurar pela feitura documental e retratar o cotidiano de vacas ao invés de seres humanos. À sua própria maneira, Arnold conta histórias de forma potente e ressonante, sem nunca perder o apelo cinematográfico da estilização e da fabulação. Docinho da América está disponível no HBO Max.

Gustavo Fernandes é aluno de Cinema e Audiovisual na PUC Minas e monitor do CCM.

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