O diálogo, o discurso e o contradiscurso: a prosa em cacos de A Sirene e da Fundação Renova

Jornal A Sirene | Foto: Juliana Carvalho

Por Lara Dornas.

“Em Mariana, a derrama dos rejeitos empilhados como um castelo de cartas em duas barragens a montante, apoiando-se a si mesmas […] cobrou seu tributo às comunidades e a todos os reinos da natureza em vidas e em destruição, no distrito de Bento Rodrigues e em tudo que se estende pelo rio Doce até o mar”.  A epígrafe de Wisnik (2018) dá conta do que foi o rompimento da barragem de Fundão, no município de Mariana, em 5 de novembro de 2015.  O tsunami de lama cravado na experiência dos atingidos – comunidades, empresas, Estado, entre outros – provocou toda sorte de discussões em meio ao complexo jogo de ação-reação e significações-ressignificações que o acontecimento é capaz de suscitar. Entre elas, a mobilização de estratégias organizacionais-discursivas-institucionais-sociais dos atores envolvidos. 

É o caso da Fundação Renova, organização sem fins lucrativos, mantida pelos acionistas da Samarco – Vale e BHP Billiton –, criada para compensar e reparar os atingidos; e do jornal A Sirene, produzido sob a responsabilidade dos Atingidos pela Barragem de Fundão, da Arquidiocese de Mariana, do coletivo Um Minuto de Sirene e apoiado pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). As lentes se voltam para o embate sobre a estratégia discursiva acerca do diálogo mobilizado pelas duas organizações. De um lado, A Sirene, responsável por materializar a voz dos atingidos, reivindicando o seu status de fala, escuta e memórias e, do outro, a Fundação Renova, com sua voz tecida no discurso técnico da justificativa pública e da prestação de contas. 

Os estudos do campo da comunicação no contexto das organizações reforçam a importância da significação das ações comunicativas e das práticas discursivas quando colocadas em circulação. Neste processo, as organizações deflagram suas estratégias comunicacionais, e os demais atores sociais também acionam as suas: discursos são mobilizados assim como os contradiscursos.  Estas práticas comunicativas são atravessadas pela  vida cotidiana – social, política e cultural –, e mobilizadas por sujeitos em relação, imersos na complexidade deste processo. Tal perspectiva relacional demanda a formulação de estratégias longe da instância do já-sabido, dito ou esperado, em que se pese a consideração às disputas de poder, discursos e os sentidos intrínsecos aos processos interacionais. Fóruns dialogais se inscrevem neste tipo de estratégia e ocupam o espaço nas práticas comunicacionais, visando à construção e à consolidação da legitimidade e da credibilidade das organizações e atores envolvidos. São embaladas pelo discurso e, assim, responsáveis por (re)configurar as estruturas sociais que constituem e que são por elas constituídas (OLIVEIRA; PAULA, 2014). Neste sentido, as organizações e os atores sociais se instituem e se posicionam na sociedade por meio de suas estratégias discursivas. Tais fóruns de interlocução, dialogais – entre organização e atingidos –, desvelam as assimetrias discursivas nas relações de poder entre estes atores sociais, e os arranjos desenhados para produzirem respostas a problemas concretos em torno da enunciação/dialogismo, tratamento do dano e da resistência.

A Fundação Renova, ao desenvolver o Programa de Comunicação, Diálogo, Participação e Controle Social (PCPDCS), propôs uma série de iniciativas voltadas para promover a participação e o controle social dos atingidos, a fim de envolvê-los no processo de reparação e compensação sociais. Uma forma de “chancelar” a sua atuação, por meio daqueles que foram diretamente atingidos pelo acontecimento. Ao focarmos na mobilização discursiva em torno de práticas dialógicas da Fundação Renova, o que se percebe é que existe uma formulação teórica-conceitual que reforça a abertura para a escuta efetiva, a expressão autônoma, livre, e a compreensão das diferenças, por meio do envolvimento dos atores sociais na construção, referendamento, adaptação e execução das soluções de remediação. O discurso da Renova ressalta a priorização da transparência, o acesso à informação ampla, transparente, acessível e contínua, dando a ver sua tentativa de minimizar assimetrias, distâncias institucionais e simbólicas entre ela e os/as atingidos.  Reconhece, ainda, a impossibilidade de se controlar os rumos da comunicação, considerando que a construção do sentido “pode ser alterada de acordo com a percepção do interlocutor ao qual a comunicação é destinada” (FUNDAÇÃO RENOVA, 2018, p.65). 

A reflexão sobre o tema apontou que vários dos elementos presentes na mobilização discursiva do diálogo – abertura para o consenso, alteridade, ausência de assimetrias, compartilhamento e criação de um espaço em que todos ganham –, estão presentes no discurso da Renova. Em meio à  práticas dialógicas semanticamente nominadas de eventos, rodas de conversa, reuniões, grupos de trabalho, visitas, encontros, entre outros, o que se registra são números expressivos de fóruns de interlocução e participantes.

Os atingidos, por meio do jornal A Sirene, posicionam o Programa de Diálogo Social como uma farsa, sugerindo suas intenções reputacionais, com fins de recuperação da credibilidade e legitimidade extensivas, e sem direito à pedágio da Samarco e de seus acionistas. O grupo entende a Fundação Renova, a Samarco e seus acionistas como portadores de uma identidade única. No contradiscurso de A Sirene é visível a necessidade dos atingidos em fugir do controle da Renova/Samarco, levar informações de uma forma mais próxima e em espaços que reconhecem como seus (A SIRENE, 2018). A reivindicação manifesta pelo reconhecimento, traduzida na necessidade de respeito a suas crenças, desejos, lugar de fala e da argumentação/interlocução, atravessa o seu discurso.  Os atingidos questionam os espaços de fala e o status de fala desses sujeitos falantes que participam dos fóruns de interlocução mobilizados pela Renova. Este embate nos remete à ordem do discurso e a força das relações ali imbricadas, pois, conforme Foucault (1996), toda relação é uma relação de força que revela verdadeiras arenas de batalha entre os envolvidos – os que falam e até mesmo junto aqueles que tiveram suas falas apagadas. 

Ao analisarmos como se dá a mobilização discursiva do diálogo na estratégia comunicacional da Fundação Renova, nos deparamos com as estratégias do jornal A Sirene, como um ator institucional e que, como tal, assume também práticas organizacionais, acionando arranjos para fazer frente a Renova.  Defrontamo-nos com a dinamicidade de dois atores institucionais na disputa de sentidos em torno do processo de reparação: a Renova produz arranjos em contato com os demais atores institucionais que, por sua vez, também mobilizam seus arranjos, ambos em busca de reconhecimento e controle. Se por um lado a Fundação Renova é, segundo os/atingidos(as), um arranjo legal-institucional, depreendemos  que A Sirene também constitui-se em um tipo de arranjo, neste caso,  social-institucional. Se a Renova mobiliza fóruns de interlocução para promover a participação e o controle social, A Sirene e a Comissão de Atingidos também acionam seus próprios espaços dialogais. 

O embate Renova e A Sirene/atingidos evidencia a presença de dois atores institucionais mobilizando suas próprias dinâmicas, por meio de quadros semânticos e estratégias interacionais distintas, em processos de construção de arranjos organizacionais entrelaçados entre si. Ambos, inscritos na arena do jogo enunciatório, em busca de reconhecimento – legitimidade e credibilidade –, ao se confrontarem com as relações de poder, revelam uma prosa em cacos inscrita em meio a discursos nunca aleatórios e/ou desprovidos de intenção. 

Referências Bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1996. 

FUNDAÇÃO RENOVA. Belo Horizonte, c2020. Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/. Acesso em: 09 dez. 2019. 

FUNDAÇÃO RENOVA. Programa de comunicação, participação, diálogo e controle social (PCPDCS). Belo Horizonte: Fundação Renova, jun. 2018. Disponível em: https://sei.ibama.gov.br/documento_consulta_externa.php?id_acesso_externo=9046&id_documento=3257651&infra_hash=ab69976ef9f75ff7803995ef9100dd9d. Acesso em 27 jul. 2019.

OLIVEIRA, Ivone de Lourdes; PAULA, Carine F. Caetano de. Comunicação no contexto das organizações: produtora ou ordenadora de sentidos? In: OLIVEIRA, Ivone de Lourdes; SOARES, Ana Thereza Nogueira (org). Interfaces e tendências da comunicação. São Caetano do Sul: Difusão Editora, 2008.  p. 91-108.

WISNIK, José Miguel. Maquinação do mundo. Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

A SIRENE. Mariana -MG. Disponível em: http://jornalasirene.com.br/. (Edição 1 fev/2016 a Edição 44 dez/2019).

Lara Dornas é mestra pelo PPGCOM da PUC-Minas.

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