O Dia de Jerusa resgata a simplicidade dos gestos e aposta no poder da boa palavra

Foto: Divulgação/Odun Formação e Produção

Por Carlos Eduardo de Noronha.

A simplicidade nunca esteve tão em alta como agora. Junto ao excesso de informações, à convergência de ideias e à produção industrial de conteúdos, quem opta pela simplicidade se destaca em meio ao ritmo frenético da vida contemporânea. Foi exatamente neste contexto que a cineasta Viviane Ferreira apresentou Jerusa Anunciação e nos convidou a passar um dia em sua casa. Jerusa está para receber os filhos e netos para o almoço de aniversário quando é surpreendida por Silvia, pesquisadora da Central de Opinião Popular interessada em realizar uma entrevista sobre sabão em pó.

A ternura e humildade de Jerusa cativam o público já nos primeiros momentos em que Léa Garcia, sua intérprete, entra em cena. Contudo, o abraço demorado que ela oferece a Silvia (Débora Marçal), e a insistência de prolongar e deturpar  perguntas da pesquisadora funcionam como pistas para o relativismo humanístico que destaca a complexidade da personagem, uma vez que ela demonstra carência e melancolia. Com Silvia não é diferente. Ela cumpre ordens no trabalho (expressas de maneira não tão gentil por sua superiora e colegas), precisa se desvencilhar do assédio (como quando entrevista Lourival, o dono de um bar) e espera uma vaga na faculdade; tudo isso é feito com empenho e resiliência. Tais características funcionam como um espelho que, através da multiplicidade, reflete o dia a dia de milhares de mulheres negras e periféricas espalhadas pelo Brasil.

O encontro das duas personagens desperta o ponto em comum entre elas: a ancestralidade. Jerusa relata a história da avó, Maria Jerusa Anunciação, que viveu como escrava, sem registro e sem estudo, e teve que se passar por católica para ser “aceita”. A pesquisadora, atenta, parece não se incomodar com as mudanças de foco de sua entrevistada – pelo contrário, ela houve e se interessa por tudo, apesar da preocupação com o tempo expressa nos movimentos de pernas e braços. Nesse sentido, a direção de arte, executada por Laura Carvalho, também merece ser celebrada. O cenário contribui com objetos que nos inserem no conceito da obra, reivindicado a ancestralidade imageticamente com os santos negros que adornam a entrada da casa de Jerusa (Nossa Senhora Aparecida, e São Benedito, por exemplo) ou com a máquina de costura em um dos cantos da casa.

O ponto chave da história se dá quando Silvia, ao ir ao banheiro de Jerusa depois de algum tempo tentando realizar seu trabalho, lê nas páginas de um jornal seu nome na lista de aprovados da Fuvest. Ela, então, retorna ao encontro da protagonista, pega suavemente as suas mãos e, juntas, cantam “parabéns” em baiano: “Seu maquinista, por favor, pare este trem” – uma cena curta, porém emocionante pois, aparentemente, Jerusa iria comemorar os 77 anos sozinha; e extremamente representativa em função da individualidade compartilhada.

A baiana Viviane Ferreira, 35, diretora e roteirista do curta-metragem, é formada em Cinema pela Escola de Cinema e Instituto Stanislavisky e graduada em Direito pela Universidade Paulista, especializada em direito público com ênfase na área autoral e cultural. Além disso, ela preside a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) e fundou a Odun Filmes, produtora voltada a obras de caráter identitário.

A APAN, de acordo com Viviane, “está inteiramente ligada aos sonhos, subjetividades e construções simbólicas das pessoas negras desse país” (FERREIRA, 2017). E completa, destacando o papel da Associação na luta por diversidade no audiovisual como um “processo político travado em uma arena na qual os privilégios da branquitude têm montado um grande cerco frente aos coerentes questionamentos e reivindicação de combate ao racismo estruturante no setor” (FERREIRA, 2017). 

Carlos Eduardo de Noronha é monitor do CCM e graduando em Jornalismo pela PUC Minas.

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