O segundo longa da diretora pretende promover o “prazer feminino”, mas entre as telas e os bastidores, parece que ninguém saiu satisfeita.
Por Marco Souza
Expressões como “gaslight”, “gatekeep” e “girlboss” já estão mais popularizadas nos meios digitais. Elas são usadas para designar diferentes ações vinculadas a ideologias falaciosas e manipulativas que se revestem de uma bandeira aparentemente progressista e feminista. O termo gaslight, em específico, pode ser livremente traduzido como “distorcer”. Refere-se ao fenômeno de fazer alguém se questionar sobre suas próprias faculdades mentais, como visto no filme homônimo de 1944, Gaslight, e na peça de teatro que lhe deu origem, de 1938. É tendo em vista esse conceito que podemos afirmar que o produto final do filme Não Se Preocupe, Querida (2022) é certamente mais interessante que seus bastidores.
A construção de um “olhar feminino” no cinema, uma resposta direta ao “male gaze” (olhar masculino) predominante, é tópico de discussão há alguns anos. O debate se popularizou, por exemplo, em decorrência do movimento conhecido como “#MeToo”, que denunciou diversos casos de assédio contra mulheres entre profissionais da indústria cinematográfica. Mais do que nunca, se colocou a necessidade de valorização das profissionais do ramo, que merecem ter suas vozes prestigiadas e alavancadas ao grande público. Daí, surgiram obras como O Homem Invisível (2020), A Assistente (2019) e Não Se Preocupe, Querida, que ilustram as dificuldades, os estigmas e os obstáculos que as mulheres diariamente enfrentam. Filmes como esses tem chamado atenção em um mercado extremamente competitivo – independentemente se recebem boa recepção crítica ou não.
Não Se Preocupe, Querida, nosso foco de discussão, não é um filme ruim. O segundo longa da diretora Olivia Wilde acerta em vários pontos: é muito bem dirigido, possui uma premissa intrigante, traz consigo uma mensagem certamente relevante e a maioria das atuações confirma a impressão de que estamos diante de um filme exitoso. Mas tal qual o ambiente diegético construído por Wilde, também descobrimos que há algo de errado nos bastidores.
Mesmo antes do lançamento oficial do longa, o que não faltavam eram especulações de desavenças durante todo o processo de produção do filme. E obviamente, Wilde estava no centro de tudo. Uma primeira alegação foi de que a diretora-atriz teria provocado o fim de seu próprio noivado ao se relacionar com o protagonista masculino do filme, o cantor Harry Styles. Houve boatos de que Wilde ainda teria mentido sobre demitir Shia LaBeouf do projeto após o ator ser acusado de abuso sexual durante as gravações de outros filmes. A estreia do longa no Festival de Veneza também fez a internet ferver com teorias da conspiração.
Pouco a pouco, a boa reputação de Wilde, construída por meio de seu primeiro filme Fora de Série (2019) e de sua política de barrar a entrada de “babacas no set de gravações”, começou a se tornar cada vez mais deturpada. De certa forma, pode-se argumentar que as especulações foram boas para a circulação do filme, que conseguiu arrecada quase 55 milhões de dólares mundialmente até o dia 2 de outubro, ultrapassando seu orçamento de 35 milhões. Claro que o sucesso de bilheteria pode ser atribuído, talvez, à presença do já mencionado Styles, que traz consigo uma legião de fãs ansiosas para conferir o primeiro papel de fôlego do cantor. Ainda assim, é inegável que todas as controvérsias online contribuíram para que um filme tão esquecível e medíocre pudesse captar o interesse do público.
Não Se Preocupe, Querida se apresenta como um produto quase que incompleto. Ele possui início, definitivamente possui um extenso meio e, após duas horas de duração, finaliza num clímax extremamente apressado. A sensação que permanece é de indagação. Muito questões emergem durante o filme, mas quase nada é respondido. Quando há algum tipo de desfecho, ele é apresentado sem cautela, para que o baque das revelações não se dissipe até os créditos subirem.
Florence Pugh, Chris Pine, Gemma Chan e Olivia Wilde – que aliás, também atua no próprio filme – apresentam atuações que facilmente compensam a inexperiência de Harry Styles, mas se tornam desperdiçadas com o desenvolvimento menor do próprio longa. É palpável o talento e o potencial presentes, mas eles não suprimem as insuficiências da obra. Por exemplo, há uma carência de diálogos, situações e ações capazes de nos transportar para a pele de Alice (Pugh) e de nos evidenciar sua amplitude de emoções, como acontece com a protagonista de O Homem Invisível. Se em um filme de duas horas reconhecemos que um dos maiores problemas é a falta de tempo para entender o mundo e as personagens apresentadas, pode-se afirmar que a edição definitivamente não lhe fez nenhum favor.
Dessa forma, a narrativa criada em torno de Não Se Preocupe, Querida não poderia ser mais irônica. Wilde deixa claro em seus trabalhos a importância da causa feminista ao exaltar a beleza da sororidade em Fora de Série e ao denunciar o gaslighting nas falas e atitudes de muitos homens em seu mais novo projeto. Mesmo assim, a diretora não parece preocupada em expandir o arco do filme para fora do sofrimento de Pugh, retratando-a como uma personagem completamente incapaz. A atriz, por sua vez, aparenta estar infeliz com sua diretora, mas é contratualmente obrigada a não dizer nada negativo sobre ela.
No final das contas, a real pessoa sofrendo o gaslighting aqui é o espectador, que veio às salas de cinema esperando uma história original (ou realmente para ver Harry Styles atuando) e recebeu nada mais que uma refilmagem contemporânea não-oficial de Mulheres Perfeitas (2004), que é mais efetivo como um produto audiovisual.