Memória: preservar e celebrar

Por Clara Pellegrini.

Em 2021, a Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas completa 50 anos de existência. Fruto de um contexto histórico marcado por importantes mudanças culturais, sociais, tecnológicas e políticas, a FCA nasce como reflexo da consciência da Universidade acerca da crescente presença e influência dos meios de comunicação de massa na sociedade e da importância de se garantir uma preparação qualificada para seus usos críticos. Diante da ditadura militar instaurada em 1964 e do cerceamento das liberdades de expressão que marcou o período, essas necessidades tornam-se ainda mais urgentes. É fundada, então, em 1971, a  Faculdade de Comunicação Social, reestruturada em 2001 como Faculdade de Comunicação e Artes – um espaço político-pedagógico de formação profissional e humanística, de exercício de crítica e resistência, consciente da função social da comunicação. Ao longo dessas cinco décadas, a FCA formou milhares de profissionais nas áreas de Jornalismo, Publicidade, Relações Públicas e Cinema.

Como parte das celebrações pelo cinquentenário da Faculdade, o Centro de Crítica da Mídia (CCM) e o Centro de Experimentação em Imagem e Som (CEIS) realizaram, em parceria com a plataforma de streaming Cardume, a Mostra Memória: O Cinema nos 50 anos da FCA. O festival, que aconteceu entre os dias 18 e 28 de junho, exibiu 32 curtas-metragens produzidos por alunas e alunos dos cursos de Comunicação Social da PUC Minas no decorrer desse meio século. As obras foram divididas em três atos, cada um organizado a partir de uma perspectiva própria, demarcados por diferentes tempos que compõem essa história. A realização da Mostra gerou também um catálogo, com textos que registram a importância da iniciativa e destacam as escolhas e os filmes que enredaram o evento, refletindo sobre os trabalhos apresentados em um esforço inédito de discussão de parte dessa produção em perspectiva histórica e estética.

Além da exibição dos filmes, a Mostra Memória contou com uma live de abertura, na qual convidados apresentaram as motivações, processos, instituições e pessoas que tornaram o festival possível, refletindo sobre a importância e a história da FCA, e uma live de encerramento, onde foram debatidos temas relativos ao cinema independente brasileiro, como a importância de valorização dessa produção – especialmente no contexto atual de desmonte da indústria audiovisual – e o papel essencial dos festivais como espaços de circulação e preservação desse cinema; ambas transmissões podem ser assistidas no canal da FCA no Youtube.

Durante o encerramento, foram divulgados os dois curtas mais votados pelo público: Glória (Arthur Pereira, 2019), que compunha o Ato II, e Penúltima Página (Gustavo Koncht, 2020), exibido no Ato III. Os realizadores foram premiados com uma assinatura de seis meses gratuitos na plataforma Cardume – parceira inestimável do evento. A Cardume é um portal de streaming de filmes brasileiros de curta e média metragem, fundada pelos artistas mineiros Daniel Jaber e Luciana Damasceno. A plataforma tem como propósito maior o apoio e a valorização do audiovisual nacional, através da difusão, fomento e internacionalização dessa produção independente. Com assinaturas a valores acessíveis e mais de 120 filmes no catálogo, o portal retorna parte da verba arrecadada aos produtores das obras e promove ações de formação e impulsionamento do cinema brasileiro, além de ter uma seção destinada exclusivamente a filmes universitários, provenientes de todas as regiões do país, que podem ser assistidos gratuitamente. Ao fim da Mostra Memória, a plataforma escolheu ainda um dos curtas exibidos para compor permanentemente seu catálogo: Ditadura Roxa (Matheus Moura, 2020), também integrante do Ato II.

Frente a crítica situação da pandemia no Brasil, o apoio da Cardume foi imprescindível para a viabilização da Mostra. Dada a impossibilidade de realização do festival de maneira presencial, com exibição física dos filmes, a parceria representou a possibilidade de sobrevivência da iniciativa no formato online – preservação e celebração da memória e da história da FCA apesar dos tempos difíceis. Essa foi a força motriz do evento, alicerçado, a partir do marco do aniversário da Faculdade, pela vontade de uma retrospectiva desse meio século de existência por intermédio do cinema. A estrutura da Mostra Memória, delineada por atos demarcados temporalmente, fez uma recapitulação histórica através das imagens colocadas em tela; não que os filmes em si fizessem esse gesto, mas sua própria presença era reveladora do percurso.

A escolha de narrar essa história através do cinema é, ela mesma, representativa da jornada da FCA. Ainda que o curso em si seja o mais recente dentre os quatro que compõem a Faculdade, a relação entre eles é intrínseca, estabelecida antes mesmo da criação da Faculdade de Comunicação e Artes. Ela nasce como herdeira direta da Escola Superior de Cinema, fundada em 1961 pelo Padre Edeimar Massote. Fruto de um contexto fortemente marcado pelo cineclubismo e pelo interesse na educação cinematográfica, a Escola de Cinema é o primeiro curso de formação superior teórico-prática em audiovisual de Minas Gerais. Passam por ela importantes cineastas, como Neville D’Almeida, e seus alunos participam das gravações de notáveis obras do cinema brasileiro, como O Padre e a Moça (Joaquim Pedro de Andrade, 1966) e A Hora e a Vez de Augusto Matraga (Roberto Santos, 1965). Apesar da produção destacada, com filmes premiados em festivais nacionais, a Escola tinha um custo muito alto e poucos alunos; por questões econômicas, é extinta em 1970 –  um ano antes da criação da FCA.

A partir do ano seguinte, a então Faculdade de Comunicação Social se encarrega de perpetuar o envolvimento com a reflexão e a produção cinematográficas, especialmente através da figura de Paulo Antônio Pereira. Ex-aluno e posteriormente professor da Escola Superior de Cinema, ele passa a fazer parte do corpo docente da FCA em 1972, e já em 73 realiza com os alunos o primeiro dos que viriam a ser 314 filmes oficialmente produzidos na Faculdade, ao longo dos quase 40 anos em que lecionou na PUC – contando os não finalizados, o número salta para quase 400. Paulo Pereira também organizava festivais nos quais essa produção era projetada: de 1973 até os anos 90 foram quarenta, alguns com exibição no Cine Belas Artes, e sempre com forte presença do público. Apaixonado por filmes desde a infância, Paulo chegou a escrever um livro sobre o tema, publicado em 1981. Aposentou-se em 2009, mas continuou estudando e ensinando cinema até seu falecimento em 2016.

É graças a ele que grande parte dessa volumosa produção cinematográfica foi preservada e sobrevive até hoje. O Ato I da Mostra Memória se constituiu justamente de filmes pertencentes ao acervo pessoal de Paulo Pereira, realizados por alunos da FCA nos anos 1970 e 1980 – a primeira oportunidade em décadas de contato público com essas obras. Foram exibidos 18 curtas-metragens do período, agrupados em três programas temáticos. Intitulados Marginais, Políticos e Narrativos, cada programa foi formado por seis filmes que se avizinham temática e estilisticamente. Refletindo sobre a pequena parcela dessa produção aqui reunida, os curadores do Ato I produziram textos que recheiam o catálogo da Mostra; um esforço de elaboração acerca dessas imagens em perspectiva com o contexto histórico em que elas foram engendradas.

Os curtas do Ato II, por sua vez, foram realizados já dentro do curso de Cinema e Audiovisual da PUC Minas. Foram selecionadas sete obras, produzidas desde a criação do curso, em 2014, até março de 2020. As mais de quatro décadas que separam as produções cinematográficas dos respectivos atos traçam diferentes capítulos da história da FCA, e os filmes provenientes desses períodos distintos carregam consigo, cada um à sua maneira, atravessamentos de seus próprios tempos. Foram os curtas-metragens do Ato III, no entanto, que mais frontalmente lidaram com os impactos de sua época: as sete obras que compuseram o último ato da Mostra foram realizadas durante a pandemia de COVID-19 – contexto que incidiu sobre essa produção dentro e fora das telas. Além dos textos, a relação completa dos filmes reunidos pelo festival também pode ser conferida no catálogo. Fazendo valer o nome do evento, a Mostra Memória integrou a comemoração do aniversário da Faculdade de Comunicação e Artes promovendo a preservação tanto das imagens quanto do próprio legado da instituição, resgatando as origens e ressaltando a história desses 50 anos de existência.

Clara Pellegrini é monitora do CCM e graduanda do curso de Cinema e Audiovisual pela PUC Minas. 

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