Memória e persistência dos golpes: as revistas brasileiras na análise de Frederico Tavares

Por Juliana Gusman.

A relação de Frederico Tavares com revistas começou, segundo ele, na infância. Seu interesse extrapolou a gaveta na qual guardava “décadas em papel couché” debaixo da cama para se transformar em um persistente objeto de estudo, foco do trabalho do professor do departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Ouro Preto há onze anos. Ao longo do tempo, no entanto, o apreço passou a conviver com certa desconfiança, sentimento profícuo para a perspectiva crítica.

No dia 6 de setembro último, a convite do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa, da PUC Minas, Tavares, que é autor de um verbete do livro Enciclopédia do Golpe – Vol. 2: o papel da mídia (lançado em 2017), voltou seu olhar desconfiado para o papel das revistas semanais em nosso contexto político atual. Na palestra Revistas para quem: críticas ao fazer jornalístico em tempo de golpes, discorreu sobre as estratégias discursivas desse tipo de produção jornalística, especialmente engajada, nos últimos anos, na consolidação da narrativa do “impeachment”.

Em um cenário abstruso para o mercado editorial – vide, por exemplo, o fechamento de dezenas de títulos da editora Abril – o professor antecipa um questionamento que tem acompanhado seu esforço investigativo: até que ponto vale a pena estudar revistas? E já rebate: “A gente tem que entender que as revistas não existem por acaso. Elas fazem um tipo de jornalismo que é delas. E é a partir dessa singularidade, seja ela de maior ou menor repercussão, que a gente pode insistir na sua importância e, consequentemente, naquilo em que a gente acha que elas pouco atuam, mas acabam atuando”.

Para Tavares, a especificidade do modus operandi das revistas pode favorecer certas demandas da nossa sociedade, no que diz respeito a pautas e agendamentos, de uma forma muito mais enfática do que se pode pensar. A partir de uma análise de capas da revista Veja (que, apesar da redução de 50% de títulos impressos do mercado em dez anos, continua faturando cerca de 50% do público ainda existente) o professor demonstra como a publicação, e outras similares, são responsáveis pela reiteração de determinados discursos implicados em nossa tessitura política.

As revistas, segundo Tavares, afirmam-se como potentes instrumentos na cristalização de relações de poder. O professor advoga que a Veja – e demais publicações semanais que seguem o mesmo padrão – resgata e atualiza memórias, da própria revista, de outros periódicos e do púbico, estrategicamente, em certos contextos. A partir de sua análise, percebe-se uma postura que tende ao reforço e à repetição de preceitos ideológicos que visam construir formas de legitimação discursivas. “Dentro de uma cobertura midiática, se escolhe não apenas o que é atual ou não, mas também aquilo que deve permanecer. Então as revistas semanais não falam apenas de atualidades, mas elas elegem aquelas que devem se perpetuar, que vão se atualizar, mas cujo sentido vai se mantendo”. Logo, promove-se uma forma de fazer jornalístico naturalizada, que deixa de ser, dessa maneira, foco de contestações. Em outras palavras, o conteúdo torna-se alheio às estratégias que lhe deram origem e que não são colocadas em xeque. Nada bom para promover desconfianças produtivas.

Conforme Tavares, esse mecanismo permite que as revistas se desalinhem de um conjunto de expectativas profissionais e princípios éticos inerentes ao campo. Exemplo paradigmático para o professor é a capa da edição 2397 da Veja, que circulou em outubro de 2014.


“Essa capa na qual temos Dilma e Lula, personagens frequentes da revista, foi veiculada no sábado, 25 de outubro de 2014, nas vésperas da eleição do segundo turno, disputada entre Dilma e Aécio. Por detrás dela, há uma expectativa, construída ao longo do tempo pelo jornalismo, de que o público está vendo ali uma verdade. Essa capa vai, inclusive, pautar uma edição inteira do Jornal Nacional. A Veja não é aquela que traz a notícia. Ela é a notícia. Ela possui, na sua temporalidade e na maneira como se relaciona com a sociedade, a capacidade ou a autorização para, numa capa como essa, independente do conteúdo que está posto, fazer valer este conteúdo. Esse episódio faz parte de um processo, de um conjunto de atualizações que nesse momento atinge um certo ápice”. Tavares lembra, ainda, que essa capa foi fotocopiada e distribuída no metrô de São Paulo, como uma espécie de panfleto, não político, mas “jornalístico”. Edifica-se, então, uma interpretação que, apesar de esconder seus modos de conformação, acaba se tornando gatilho para pauta noticiosa.

Apesar da fragilidade do pilar que sustenta a reportagem da revista em questão, ancorada em um vazamento duvidosamente adquirido, seu formato socialmente naturalizado e não confrontado engessa possíveis críticas a sua prática. “E isso é reiterado por outro jornalismo, que é o televisivo. Tem-se, aí, uma inversão de valores jornalísticos. Ela não se dá apenas porque se trata de uma cobertura enviesada em relação a questões ideológicas, mas ela passa a ser também uma cobertura enviesada pelo desequilíbrio que oferece”.

“Seja no Jornal Nacional, na Globo, na Veja, na Isto É ou na Folha de S. Paulo, há uma cobertura intensa e massiva desnivelada sobre os lados que estavam em jogo. Esse desnível se revela há muito tempo”. Para ilustrar o argumento, lê um editorial da revista Veja de 2006, que já sugestionava anulações de resultados de urnas. “O impeachment da presidenta Dilma, por exemplo, já se anunciava há muito mais tempo por esses veículos, desde o primeiro governo do PT. É a perpetuação de um sentido. Há uma naturalização no discurso sobre o impeachment que cria, com o sentido da perenidade, a inevitabilidade. É a solução que nosso jornalismo faz crer que é viável”. As revistas, portanto, perseveram por causa de sua capacidade de reverberação em outras mídias de maior amplitude e alcance. Elas fazem parte da engrenagem que produz um discurso político específico.

“Pode-se afirmar que se trata de um ponto de vista, porém no caso das revistas e suas repercussões, trata-se de uma continuidade. O golpe é, também, uma duração jornalística, assim como é uma duração histórica. Um golpe não acontece de um dia para outro. E os tempos que compõem as páginas escritas no passado seguem no futuro. A revista faz isso. Não por que os conteúdos do golpe foram ou seguirão sendo manchete. Mas porque a essência do golpe é também própria do modo de ser e de fazer um tipo de jornalismo”.

O cenário se agrava quando recordamos que grande parte das publicações semanais do país abriga posicionamentos conservadores, frequentemente reacionários e vinculados a pautas da direita, ligadas a grupos familiares organizados em grandes oligopólios, promovendo uma leitura padronizada e uma visão de mundo engessada. A retomada da democracia em tempos de golpe, como deixou claro a fala de Tavares, passa por uma urgente pluralização da mídia e pela necessidade de legitimação de outras práticas jornalísticas que escapam do conluio dos grandes barões da imprensa. Junto com a perpetuação do discurso midiático hegemônico, caminha, continuamente, o nosso desafio.

Juliana Gusman é graduada no curso de jornalismo da PUC Minas. É membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social.

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