Liberdade que aprisiona

Por Júlio Martinez. Em Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar (2019) Marcelo Gomes (diretor de Era Uma Vez Eu, Verônica e Joaquim)  retorna  a Toritama, cidade em que costumava ir com seu pai quando criança, localizada no agreste de Pernambuco. Atualmente, o município é conhecido por ser a capital do jeans e seus moradores se encarregam de cerca de 20% da produção nacional. Somos apresentados à Toritama por meio de planos que evidenciam o forte negócio da cidade. O documentário se inicia com um motoqueiro segurando uma penca de calças jeans, transportando-as por uma rodovia. Depois, a câmera observa o processo de produção em uma das facções, como são chamadas as pequenas fábricas dentro das casas, responsáveis desde o corte das roupas até o carregamento da mercadoria em uma carreta.

Após uma abordagem mais observacional e com algumas narrações pontuais, Marcelo Gomes resolve interagir com os trabalhadores e entrevistá-los. Através dos relatos dos moradores, percebemos que Toritama é basicamente uma máquina de produção. Através de uma montagem rítmica testemunhamos jornadas de trabalho que vão de 8 às 22 horas sem parar e o único descanso do dia é a hora do almoço, quando se pode tirar rápidos cochilos. A partir desse momento é que conhecemos Leo, um dos personagens centrais do documentário. O som das máquinas de costura perdura na maior parte do filme e alguns entrevistados continuam trabalhando mesmo quando dão seus depoimentos.

Uma questão recorrente nas falas é que, nesse emprego, os produtores de jeans podem escolher os horários de trabalho. O sujeitos celebram uma suposta liberdade e autonomia, afinal, acreditam que trabalham para si mesmos. Porém, não é o que acontece. São pessoas autônomas que executam as mesmas funções durante todo o dia de jornada, como aquelas retratadas por  Charles Chaplin em Tempos Modernos (1936). Essa leva do proletariado não possui direitos trabalhistas e provavelmente, será submetida a desconfortos físicos e/ou psicológicos, mas ainda assim exalta a oportunidade que tem. Em uma cena, observamos manequins prateados ao som da trilha sonora original do grupo O Grivo, ouvimos as respostas dos trabalhadores à pergunta: “Qual é o teu sonho?”. A maioria delas está relacionada, de alguma maneira, ao trabalho. É como se não existisse vida além do trabalho. E alguns até não sabem responder à questão.

A palavra Toritama, em Tupi-guarani quer dizer “terra da felicidade”. Todavia, o momento do ano em que a cidade realmente dá um tempo na produção é no carnaval.  Nesse período, os trabalhadores se desesperam para sair da cidade. Os moradores que não conseguiram economizar dinheiro para ir à praia começam a vender seus pertences, como geladeiras e televisões, para poder viajar. Leo, por exemplo, não conseguiu vender a moto e a equipe de filmagem propõe uma troca: arcariam com os custos da viagem para ele ir à praia, mas, em retribuição, Leo teria que documentar o passeio. Esse ato de ceder a câmera potencializa outra forma de narrar, pois o registro revela como é o descanso anual dos moradores de Toritama. As imagens intercalam-se entre blocos de carnaval, os familiares curtindo a praia e o repouso. Nos registros de Leo, há um plano longo mostrando um de seus familiares deitado em uma rede, o que é basicamente o desejo dos trabalhadores de Toritama: ter um tempo para pensar e refletir. Algo que a produção frenética de jeans não deixa.

Marcelo Gomes mantém uma relação de proximidade com a história Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, pois em suas reflexões sobre as viagens à região que fazia com seu pai há 40 anos e, também, sobre o material filmado, como na  cena em que observamos uma mulher costurando uma parte da calça um movimento ininterrupto. Após um tempo, o som da máquina silencia. Marcelo Gomes, em off, verbaliza  sua angústia com a cena e resolve  acrescentar a ela uma trilha sonora. Em um primeiro momento, parece encantado pela dança das mãos. Porém, a agonia retorna. Conclui-se que a estética sonora não suaviza a dureza da realidade. O documentário é sobre o impacto da produção desenfreada de jeans em Toritama relacionada com a experiência do seu produtor. Marcelo Gomes interage com os sujeitos e com o material de seu filme, fazendo uma obra fluida sobre um mundo rígido.

Júlio Martinez de Mendonça é monitor do CCM e graduando em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *