Por Gloria Gomide. Não há como negar que as séries são o melhor formato ficcional adaptado à televisão ‒ difusão regular e pacto com o espectador visto que sua narrativa cumpre a promessa pragmática de regresso.
Como nos antigos folhetins do século XIX, vê-se, portanto que o seriado é sempre composto de uma mesma fórmula. Se no feuilleton original, as histórias ocupavam os rodapés periodicamente, no seriado televisivo as aventuras se desenvolvem sempre no mesmo dia, mesmo horário, com temas atraentes ao público.
O faits divers, que tem origem na oralidade, é a página que nunca envelhece, causa espanto mesmo depois de muito tempo. Entretanto, à época das primeiras publicações, tanto este quanto o folhetim mantém preso o leitor aos jornais. Estes dois gêneros tão próximos ofereciam às classes populares mortes, desgraças, catástrofes, sofrimentos e notícias. “É chegada a hora em que melodrama, faits divers, folhetim se entrelaçam numa ‘democratização’ do crime e dos criminosos”.
Daí o início do seriado atual. Estas séries são prenúncios de um tipo de programação televisiva que evoluiu exponencialmente e virou vício mundial.
Aliás, a série atualmente não é necessariamente diária, como uma novela, nem semanal como anteriormente. É possível assistir a 1, 2, 7 episódios de uma só vez com a chegada de canais como a Netflix ou a Amazon, as quais disponibilizam toda a temporada de uma só vez. Até um termo foi criado, binge watching, ou “porre de TV”.
E assim chegamos ao que nos interessa: Black Mirror.
Eu não gosto de Black Mirror. No entanto, como pesquisadora de séries, minisséries, seriados tive que assisti-la algumas vezes.
A conheci no ano de seu lançamento, em dezembro de 2011, com três episódios. Era uma antologia na qual o primeiro episódio trazia uma história de horror, seguida por outra e outra. Só para constar, uma série antológica é aquela que apresenta enredo e personagens diferentes a cada temporada ou episódio, embora tenha o mesmo nome e às vezes até conte com atores da temporada anterior. Vide, como exemplo True Detective – duas temporadas, duas narrativas e atores diferentes com uma temática policial e de suspense. Ou Fargo, ou American Horror Story.
Criada e com alguns episódios dirigidos pelo showrunner Charlie Brocker, Black Mirror, série britânica traz uma ficção realista – um paradoxo perfeito para um presente ou futuro possíveis.
O presente/futuro é tratado como histórias de horror, fundida com o terror. O horror nos deixa uma sensação de asco ou repulsa depois de experimentar uma ocorrência desagradável, ameaçadora. É um sentimento de incômodo podendo chegar até ao ódio. O terror já é uma mistura de ansiedade e medo, muitas vezes precedido pelo suspense. Isto é o que assistimos.
O que quer dizer “black mirror”? Ora, vê-se na tela outra tela negra, esta quebrada. Em um mise en abyme ‒ narrativa que contem outras narrativas dentro de si ‒, vê-se, portanto a tela de sua televisão, de seu Ipad, da câmera de vigilância, do seu gps ou de seu smartphone. Na vinheta de Black Mirror esta tela se mostra trincada. A tela preta nada mais é que uma metáfora da realidade quebrada via ou vista pela tecnologia. A maioria dos celulares que vocês carregam já não está intacta. Transpondo para a realidade é a visão distópica representada pelo uso desses ditos aparelhos. Falar sobre o uso excessivo seria um pleonasmo, os blacks mirrors são extensão da nossa comunicação cotidiana.
“Espelho, espelho meu, há na vida alguém mais bonita do que eu?” A pergunta narcísica da rainha madrasta da Branca de Neve é uma referência e tanto para nosso tema. A personagem de conto de fadas se utiliza de um mero espelho, o qual não reflete sua imagem, mas a de alguém que responderá sua pergunta. Em Black Mirror, nós os narcisos, procuramos a resposta via qualquer tipo de tela. E encontramos o que não queremos, tal qual a rainha Má.
Mas vamos a Black Mirror. Na primeira temporada, produzida pelo Channel 4, tivemos três episódios, houve a seguir uma interrupção e apenas em 2013 a segunda temporada foi ao ar, além de um Especial de Natal em 2014. A terceira, com mais seis episódios, foi inaugurada em 2016 pela Netflix.
Irmã de “Além da imaginação” (Twilight Zone), seriado dos anos 1950 e 1960 de Rod Serling, e com um remake de 1985, Black Mirror traz para o século XXI a literatura distópica de 1984 (1949) de George Orwell, o Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley e Fahrenheit 451(1951) de Ray Badbury. Uma curiosidade sobre este último é que além de ter sido publicado em capítulos pela revista Playboy, o autor diz que sua obra não é sobre a censura, mas sim sobre a chegada da televisão e com isto o detrimento da leitura.
O primeiro episódio de Black, O Hino nacional, o piloto, dirigido por Otto Bathurst, roteiro de Charlie Brooker ficou conhecido mundialmente como o “episódio do porco”. A querida princesa britânica é raptada e para sua libertação o anônimo sequestrador coloca nas redes midiáticas que isto só aconteceria se o Primeiro Ministro tivesse relações sexuais com um porco. Tal ato deveria ser televisionado e colocado nas redes sociais em tempo real. O pobre sujeito é obrigado pelo seu staff e pelas redes a agir desta forma. O país para para assistir. Enquanto o Chanceler se submete à humilhação pública a princesa é devolvida antecipadamente. Mas como toda a população estava na frente das telas assistindo a um porco ser violado por uma autoridade política, ninguém soube. Nem o Primeiro Ministro, que no auge do sofrimento e da humilhação foi usado por escárnio. Tudo foi feito desnecessariamente. O Hino Nacional ou The National Anthem (Temporada 1, ep. 1. Direção: Otto Bathurst; roteiro: Charlie Brooker)
Em um comentário do blog Sala Criminal leremos: “A velocidade com que as informações correm pela internet faz com que as cenas mais bárbaras e cruéis sejam compartilhadas com naturalidade e assistidas como se fossem roteiros ficcionais. A tecnologia avança em alta velocidade, enquanto o senso comum parece ter estacionado na era medieval. Não é mais preciso se reunir em praça pública para assistir a um “enforcamento”, basta aguardar para receber a filmagem pelo Whattsapp. Neste cenário caótico, em que ficção e realidade se confundem, não é de se duvidar que uma cena de “sexo com porco” poderia realmente fazer sucesso.” http://www.salacriminal.com/home/black-mirror-o-porco-a-princesa-e-o-espetaculo-penal.
Assim Black Mirror virou viral.
A seguir, a maioria dos seus episódios tratará de temas sempre voltados para o uso da tecnologia e sua perturbadora relação com as redes sociais. Não há necessidade tratarmos de episódio a episódio, mas o que se vê, o que se assiste, é sempre sobre as possibilidades do mal que a tecnologia nos traz. Não há redenção.
Mesmo no episódio mais suave, San Junipero ‒ o qual as garotas apaixonadas preferem, há uma mistura de futuro e pós-futuro em uma história de amor entre duas mulheres. Neste têm-se a possibilidade de escolher entre a morte ou a eternidade artificial. O que é melhor? O limbo agradável, cheio de sexo, drogas e rock’n roll em um período determinado ou o Paraíso cheio de sexo, drogas e rock’n roll sem saída? (Temporada 3, ep. 4. Direção: Owen Harris; roteiro: Charlie Brooker).
Portanto, em sua totalidade, o horror predomina. Mesmo nas relações minúsculas e corriqueiras, como na pontuação de um aplicativo, quando uma jovem precisa ter, no mínimo, 4,5 de avaliação para poder comprar uma casa. A partir desta premissa, tudo dá errado, já que para ser bem pontuado ‒ como um motorista de Uber ‒ tem que se agradar ao outro, mesmo em situações de mau trato. O final é tragicômico. Queda livre ou Nosedive (Temporada 3, ep. 1. Direção: Joe Wright; roteiro: Charlie Brooker, Mike Schur e Rashida Jones).
Um garoto bacana, depois de uma série de peripécias aparentemente ingênua, é acusado de pedofilia. Cala a boca e dance ou Shut Up and Dance (Temporada 3, ep. 3. Direção: James Watkins; roteiro: Charlie Brooker e William Bridges)
Um marido morto é replicado como seu Outro, mas sem conseguir expressar emoções que não estejam nos excertos ou resquícios deixados pelo próprio na Internet. Cria, portanto uma inteligência artificial quebrada. Volto logo ou Be Right Back (Temporada 2, ep. 1. Direção: Owen Harris; roteiro: Charlie Brooker).
Chips de lembranças podem ser inseridos e ver o passado, tanto seu, quanto de quem se quer. O “Grão” é implantado atrás da orelha do usuário e passa a registrar ininterruptamente tudo o que acontece. Através de seus próprios olhos vê-se o que se registrou. Ou de quem se obriga a o mostrar. O que causa fantasmas de realidade e traições matrimoniais. Toda a história de você ou The Entire History of You (Temporada 1, ep. 3. Direção: Brian Welsh; roteiro: Jesse Armstrong).
Um jovem norte-americano, típico na ingenuidade, necessitado de dinheiro entra em um programa de testes para jogos virtuais. Os experimentos se transformam em assassinatos e loucura. Teste de jogo ou Playtest (Temporada 3, ep. 2. Direção: Dan Trachtenberg; Roteiro: Charlie Brooker).
Bom, e assim vai.
Em dezembro deste ano, 2017, chegará a quarta temporada com mais seis episódios.
Espero que gostem, eu odeio.
Glória Gomide Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa, publicitária e professora titular do curso de
Comunicação Social na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).