Mediações éticas nas narrativas testemunhais em Memórias da Vila

Por Júnia Maria Pinto de Campos

Breve contextualização do objeto

Sabendo que as mídias tradicionais, através de esquemas representativos que domesticam o Outro ou constroem uma diferença intransponível em relação a ele, têm, historicamente, apagado sujeitos e espaços sociais, surge a inquietação de estudar a emergência de novas realidades por meio de narrativas que valorizam vozes por vezes silenciadas. Essas narrativas se referem, neste trabalho, às autobiografias, segundo Lejeune (2008), que valorizam a primeira pessoa como ponto de vista e trazem a rememoração de experiências narradas.

Como objeto empírico nessa investigação, serão analisadas as narrativas testemunhais presentes em Memórias da Vila. A recente obra busca retratar a biografia dos moradores do Aglomerado da Serra. Para isso, foram reunidos, no livro, fotografias aliadas à relatos escritos em primeira pessoa, que resgatam lembranças de moradores da comunidade. O trabalho, que é fruto da iniciativa do fotógrafo Guilherme Cunha, com a participação da jornalista Joana Tavares, busca retratar o olhar do morador sobre ele mesmo, bem como fotografar seu rosto de modo a evidenciar a sua história. A proposta acerca dos relatos está no sentido de dar a voz, de construir uma história carregada de atributos testemunhais, que ao mesmo tempo torna conhecida e dignifica realidades.

Os relatos testemunhais componentes do dispositivo de visibilidade em estudo surgiram no projeto, segundo Guilherme Cunha (2016), com o objetivo de complementar o trabalho fotográfico, no exercício de narrar o Outro, “indo além do sentido contemplativo e icônico”, inerente às fotografias (Guilherme Cunha). Essas narrativas foram produzidas a partir de entrevistas realizadas pela jornalista Joana Tavares com alguns idosos moradores do Aglomerado, que, após a gravação, os transcreveu e editou. Apesar de apresentar um nível de coloquialidade comum da fala e certo ritmo de oralidade, nota-se nos relatos que a ortografia não reproduz erros de pronúncia significativos, o que demostra uma intenção de narrar de forma mais articulada, que se contrapõe a modos pitorescos de pronúncia de sujeitos marginalizados.

Para Seligmann-Silva (2005), a literatura do testemunho traz um novo modo de se relacionar com o passado, utilizando-se da memória de forma a desconstruir a forma linear de evolução da história.

A concepção linear do tempo é substituída por uma concepção topográfica: a memória é concebida como um local de construção de uma cartografia, sendo que nesse modelo diversos pontos no mapa mnemônico entrecruzam-se, como em um campo arqueológico ou em um hipertexto. Como Celan mesmo afirmou, definindo sua poética, a sua poesia visa construir “cercamentos [Einfriedungen] em torno do sem-palavra, do sem-limites”: ele quer mapear o passado. Ao invés de visar uma representação do passado, a literatura do testemunho tem em mira a sua construção a partir de um presente. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 79).

Sendo a autobiografia um gênero intrínseco à literatura de testimonio – segundo Seligmann-Silva (2005) −, é importante destacar, para fins deste trabalho, algumas de suas principais características, de acordo com Lejeune (2008). Para este autor, a autobiografia é considerada um tipo de escrita, mas também um modo de leitura, visto que existe um contrato de leitura proposto pelo autor ao leitor, que determina o sentido atribuído ao texto na mente deste último. A autobiografia é, portanto, “um efeito contratual historicamente variável”, submetida a diferentes tipos de leituras (Lejeune, 2008, p.45). Por isso, não existe uma fórmula clara e total para defini-la. Paralelos à autobiografia existem seus gêneros vizinhos, tais como: memórias; biografia; romance pessoal; poema autobiográfico; diário e auto-retrato, ou ensaio.

Por definição, entende-se a autobiografia como uma narrativa construída retrospectivamente por um sujeito, sobre sua vida particular. Lejeune (2008, p.14) pontua, ainda, elementos pertencentes à autobiografia, separando-os em quatro categorias. São elas: as formas de linguagem, como a narrativa ou a prosa; o assunto tratado, a vida particular do sujeito ou a história de uma personalidade; a situação do autor, sua identidade e relação com o narrador; e, por último, a posição do narrador, se é personagem principal e se narra sua história de forma retrospectiva.

No caso de Memórias da Vila, a autobiografia se faz presente nas histórias de vidas narradas pelos moradores da Serra e mediadas pela Jornalista Joana Tavares. Os relatos seguem os elementos pertencentes à autobiografia, de acordo com Lejeune (2008): forma de narrativa; vida particular dos sujeitos; identidade real do autor e narrador; narrador em primeira pessoa do singular; além de seu aspecto retrospectivo de narração.

A valorização do testemunho é, segundo Sarlo (2007, p.38), um “movimento de devolução da palavra, de conquista da palavra e de direito à palavra”. Esse movimento tem, segundo a autora, um viés ideológico de cura identitária, resultante da recuperação da memória social ou pessoal. Por meio desses relatos “os direitos da primeira pessoa se apresentaram, de um lado, como direitos reprimidos que devem se libertar; de outro, como instrumentos da verdade.” (SARLO, 2007, p.41).

Sarlo (2007) aponta um problema relacionado à auto representação do testemunho como verdade de um sujeito que relata sua experiência, e coloca como necessária a análise da relação entre relato e experiência, principalmente à carga de subjetividade presente pela utilização da memória como “instância reconstituidora do passado” (SARLO, 2007, p.28). Para a autora, “todo testemunho quer ser acreditado, mas nem sempre traz em si mesmo as provas pelas quais se pode comprovar sua veracidade; elas devem vir de fora.” (SARLO, 2007, p.37). Por isso, não se pode usar a mesma metodologia para se referir aos usos judiciários ou históricos do testemunho. Em seus usos judiciais, o testemunho funciona como facilitador no exercício das provas de uma situação, que, em meio a outros tipos de evidências, auxilia na sustentação dos argumentos. Em contrapartida, em seus usos historiográficos de reconstrução do passado, como no caso de Levi, que viveu uma “situação-limite”, impossível de ser testemunhada por sujeitos que a vivenciaram até o fim, não há como considerar as mesmas regras de crítica sobre sua verdade. A “(…) intensidade da experiência vivida, incrível para quem não viveu a experiência, é também aquilo que o testemunho não é capaz de representar.” (SARLO, 2007, p.36). Devido à necessidade de se considerar as experiências e a subjetividades presentes nos relatos, surge a aporia da veracidade dos testemunhos históricos.

Mesmo diante dessa situação, a autora acredita na verdade e na importância dos relatos de experiências, porque, através deles, é possível conhecer outros lados de histórias, transformando os sujeitos em seres “cognoscíveis” e retirando-os da posição de alienação e anonimato.

O sujeito não só tem experiências como pode comunicá-las, construir seu sentido e, ao fazê-lo, afirmar-se como sujeito. A memória e os relatos de memória seriam uma “cura” da alienação e da coisificação. Se já não é possível sustentar uma Verdade, florescem em contrapartida verdades subjetivas que afirmam saber aquilo que, até três décadas atrás, se considerava oculto pela ideologia ou submerso em processos acessíveis à simples introspecção. Não há Verdade, mas os sujeitos, paradoxalmente, tornaram-se cognoscíveis. (SARLO, 2007, p.39)

O valor da verdade do testemunho se sustenta, portanto, no imediatismo da experiência vivida pelo sujeito.

Os relatos em primeira pessoa, segundo Serelle (2009, p.39), tornaram-se um dos eixos narrativos centrais, a partir da década de 1970, em uma “guinada subjetiva” que “deu a voz, por meio do testemunho, àqueles até então excluídos dos discursos majoritários.” Trazendo para o contexto desta pesquisa, as histórias de vida em Memórias da Vila, ao recuperar o “eu”, por meio dos relatos, objetivaram uma aproximação com a cultura de pessoas excluídas socialmente, para levar o leitor a se posicionar no lugar do Outro, bem como, ao reforçar a perspectiva dos excluídos, “trabalhar o entendimento sobre nossas identidades coletivas de forma menos unilateral e tendenciosa.” (CUNHA, 2016, p.15).

Sobre essa guinada subjetiva, Sarlo (2007, p.18) a teoriza, quando destaca a importância e a possibilidade de se entender o passado e valorizar os modos de subjetivação do Outro narrado para a reconstrução de histórias. Segundo a autora, isso começou a se evidenciar por meio de um reordenamento ideológico e conceitual da sociedade − entre as décadas de 1960 e 1970 − e do passado dos seus sujeitos, por meio da revalorização da primeira pessoa como referência, reconhecendo o seu lugar e a importância da sua subjetividade. Esse movimento marca a realocação dos indivíduos nas estruturas sociais, que antes eram contaminados por um falso e encoberto discurso. Com a história oral e o testemunho, a confiança no sujeito que narra a sua vida foi estabelecida não só para conservar uma memória, mas também para tornar visível uma identidade encoberta e distorcida.

Crítica midiática

Entretanto, o fato de “escrever e publicar a narrativa da própria vida foi, e continua sendo, um privilégio reservado às classes dominantes” (Lejeune, 2008, p.113). Segundo esse autor, existe o problema do circuito de comunicação, que está nas mãos das classes dominantes, que acabam promovendo seus valores e ideologia. Para ele, “os relatos autobiográficos, obviamente, não são escritos apenas para ‘transmitir a memória’ (…). Eles constituem o espaço em que se elabora, se reproduz e se transforma uma identidade coletiva, as formas de vida própria às classes dominantes.” (Lejeune, 2008, p.131).

O vivido das classes dominadas é estudado a partir de um ponto de vista econômico e político e, até o século XIX, era silenciado. O que se fazia visível e interessante de ser reconhecido até então eram biografias de pessoas célebres que tiveram êxito em algum campo da vida social. Dessa forma, é notória a existência de jogos de poder entre o vivido e o representado. A evocação da vida das classes dominadas é feita por relatos de alguém, cuja identidade não aparece, ou seja, o “discurso relatado neutraliza aparentemente a oposição entre quem tem a palavra e quem não a tem”. (Lejeune, 2008, p.139).

Pode-se refletir, a partir dessa problematização, que há uma relação não só ética, mas também política na mediação da autobiografia dos que não escrevem, pois o poder interfere diretamente nas formas de representação dos sujeitos e em sua posição de autoridade. Os modelos que são excluídos da escrita, por exemplo, são representados e resgatados pelos que a possuem. A autoridade estará, portanto, sempre do lado dos que detêm certo poder.

Em vista disso e trazendo para o contexto narrativo de Memórias da Vila, a alteridade, ao mesmo tempo em que se faz necessária, para fazer visível um outro lado da história dos habitantes da favela, pode fazer emergir uma infinidade e, ao mesmo tempo, uma incompletude de informações. (Levinas, 1980). Diante dessas realidades reivindicantes no âmbito da cultura midiática, e considerando as aporias e riscos no processo de mediação, como as narrativas testemunhais do projeto Memórias da Vila se posicionam eticamente, desafiando as práticas de mediação reducionistas, na tentativa de tornar visíveis e memoráveis realidades marginalizadas?

 

Júnia Maria Pinto de Campos possui graduação em Comunicação Social, com habilitação em Relações Públicas, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Atualmente é mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da PUC Minas e bolsista Capes.

Referências

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2010.

CUNHA, G.; TAVARES, J. Memórias da Vila: história dos moradores da comunidade da serra. Belo Horizonte, Circuito: 2016.

LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Organização: NORONHA, Jovita. Tradução: NORONHA, Jovita; GUEDES, Maria Inês. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Edição 70, Lisboa: 1980.

SELIGMAM-SILVA, M. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. Editora 34, São Paulo: 2005. 360 p.

SERELLE, M. Jornalismo e Guinada Subjetiva. Revista Estudos em Jornalismo e Mídia – Ano VI – n. 2 pp. 33 – 44 jul./dez. 2009.
Júnia Campos é graduada em Relações Públicas pela PUC Minas (2015). Mestranda em Comunicação Social pela PUC Minas e membro do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa.

*Dados da entrevista. Entrevista realizada com o fotógrafo Guilherme Cunha em 28 out. 2016.