Jornalismo alternativo brasileiro: a produção da notícia como iniciativa em economia solidária

Por Elisangela Colodeti

Este ensaio trata do papel do jornalismo contra hegemônico brasileiro, no atual contexto de avanço das políticas neoliberais. Num país onde se vive uma democracia de baixa intensidade e pouco participativa, no qual a distância entre representantes e representados cresce na mesma medida em que o ideal capitalista se edifica enquanto concepção social preponderante, buscaremos entender como o jornalismo alternativo, enquanto parte do campo, se coloca enquanto peça-chave de um conjunto de propostas e práticas de resistência e mudança paradigmática.

1. O jornalismo tradicional e o interesse do mercado

O avanço das políticas neoliberais pelo mundo deve seu sucesso, em larga medida, à capacidade das indústrias de informação e entretenimento de operar como estruturadoras e disseminadoras de visões de mundo e modos de vida que demonizam a atuação do Estado sobre a regulação das demandas coletivas e dão ao mercado o status da virtude sobre o desenvolvimento social. Conforme Denis de Moraes (2005), “a difusão midiática incumbe-se de associar o prisma de revelação da realidade a concepções alinhadas com o livre mercado”. O motivo para a ampla defesa desse discurso, ainda segundo ele, é bastante simples:

Os conglomerados de mídia desempenham um papel de agentes econômicos globais. Todos eles figuram entre as 300 maiores empresas não financeiras do mundo. […] Para este resultado, contribuíram bastante as desregulamentações neoliberais dos anos 80 e 90. Os megagrupos alastraram-se pelos Continentes sem se submeter a maiores restrições legais. Mesmo que o desempenho atual seja afetado pela retração das verbas publicitárias e pela desaceleração internacional, consultorias especializadas prevêem que os investimentos em comunicação continuarão a aumentar a médio e a longo prazos. Os players de mídia buscam alcançar os parâmetros de rentabilidade que norteiam os gigantes transnacionais. (MORAES. 2005, p. 34)

Neste sentido, os conglomerados midiáticos atuam promovendo aderência ideológica ao modelo capitalista neoliberal e diminuindo ao mínimo o espaço de circulação de ideias opostas. Interconectando o planeta através de narrativas e tecnologias, a mídia hegemônica transborda o seu discurso para todo o globo, massificando o ideal capitalista e colaborando para sua edificação, enquanto concepção social hegemônica.

No Brasil, as mega corporações de mídia estão concentradas nas mãos de poucas famílias e integram esse cenário. Nos noticiários, é evidente o modo como o mercado assume o papel de sujeito regulador da esfera política. Segundo a Professora do Instituto de Ciência Política da UnB, Flávia Biroli:

“Em um exemplo explícito e que não foge à regra de como isso se dá, a coluna Painel da Folha de S. Paulo registrava, em 28 de setembro de 2016, sob o título “Engajamento”, que “integrantes do mercado financeiro têm auxiliado o deputado [o relator da PEC 241] na interlocução com a Câmara”. Na mesma coluna, no dia seguinte e agora sob o título “Em conjunto”, é dada a informação de que “começa no governo um movimento para priorizar a aprovação da nova Lei de Licenciamento Ambiental”, uma vez que “sem ela, investidores podem ficar reticentes em participar dos leilões das concessões”. Na coluna e nos noticiários, esse enquadramento aparece como se fosse natural porque outras lógicas e interesses são suspensos. Quem, além dos “investidores”, poderia ser considerado para se discutir lei ambiental? Quais argumentos e motivações, além dos deles, poderiam estar sobre a mesa? No caso anterior, nenhum estranhamento no fato de que “integrantes do mercado financeiro” trabalhem na costura de uma PEC que modificará a Constituição de 1988, reduzindo por 20 anos os investimentos em saúde e educação e tornando ainda mais precários os direitos sociais no Brasil?” (BIROLI. 2011, p.71)

Nas democracias representativas liberais, o papel normativo do jornalismo é o de atuar como defensor do interesse público, para que os cidadãos possam formular opiniões e participar do processo político com autonomia. Contudo, o que se vê na atualidade é uma defesa do interesse de mercado, em detrimento dos ideais democráticos.

Segundo Wilson Gomes, em Jornalismo, Fatos e Interesses, o interesse público do jornalismo tradicional, ligado ao surgimento da burguesia e, portanto, baseado na autodeterminação dos sujeitos e na argumentação democrática enquanto princípio protetor dos direitos da sociedade civil, sempre entendeu como público um determinado grupo dotado de certo poder representativo, do qual mulheres e negros, por exemplo, não faziam parte. Na atualidade, ainda, a imprensa assumiu características empresariais, estando muito mais voltada a “suprir o mercado de informações” que a “suprir a arena da opinião civil” (GOMES, 2009, p.75). O sentido da palavra “público” nesse aspecto, inclusive, se confunde com o termo “audiência”.

Embora já tenha havido muitas críticas com relação à capacidade do jornalismo tradicional em cumprir seu discurso legitimador e atuar de fato como “cão de guarda dos interesses sociais”, são iniciais as discussões a respeito dos caminhos normativos e práticos que se apresentam como resposta e resistência a esse modelo de produção noticiosa.

2. O jornalismo alternativo e o interesse social

O jornalismo tradicional, enquanto parte da mídia hegemônica, é apenas uma das peças-chave do capitalismo contemporâneo, que atua em constelação. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2016), somente uma constelação de resistências seria capaz de fazer frente a esse poder ramificado. Para ele, enquanto o capitalismo dissemina pelo mundo sua lógica de priorização do mercado na regulação não só da economia, mas da sociedade em seu conjunto, emergem múltiplas formas de economia solidária que, como expressões da riqueza do pensamento e das práticas populares, se configuram, hoje, como a maior força de oposição e resistência ao avanço das políticas neoliberais.

Alguns exemplos: Defesa dos espaços públicos que, nas cidades, priorizem os pedestres, o convívio social, a vida associativa, com gestão democrática e popular, transportes coletivos, hortas comunitárias e praças sensoriais; economia cooperativa;; soberania alimentar, agricultura familiar e educação para alimentação sem uso de agrotóxicos; novo paradigma de produção-consumo que fortaleça as economias locais articuladas translocalmente; substituição do PIB por indicadores que incluam a economia do cuidado, a saúde coletiva, a sociedade decente e a prosperidade não assentada no consumo compulsivo […]. (SANTOS. 2016, p.107)

De acordo com Singer (2004), “mesmo sendo hegemônico, o capitalismo não impede o desenvolvimento de outros modos de produção”.

A economia solidária compreende diferentes tipos de ‘empresas’, associações voluntárias com o fim de proporcionar a seus associados benefícios econômicos. Estas empresas surgem como reações a carências que o sistema dominante se nega a resolver. (SINGER. 2004, p.42)

Para Singer, a economia solidária mostra-se viável, constituindo uma alternativa real ao capitalismo. É primordial, para tanto, que a sociedade tome consciência do modus operandi neoliberal, de suas consequências enquanto concepção social preponderante, e, principalmente, da força dos enfrentamentos coletivos sobre a lógica capitalista.

O jornalismo alternativo na contemporaneidade se coloca, a partir do próprio campo, como iniciativa prática e conceitualmente mais adequada às exigências da sociedade midiatizada atual, buscando atuar como um contraponto, ou como uma contraface àquele fazer considerado como o hegemônico. De acordo com Chris Atton e James Hamilton, em Alternative Journalism, as iniciativas baseiam-se mais significativamente na internet, pelo baixo custo de produção e, também, pela maior facilidade distribuição e de acesso ao público. Ainda de acordo com os autores, o sentido norteador do jornalismo alternativo está na defesa dos direitos humanos e, portanto, na valorização de narrativas sobre minorias representativas e segmentos sociais marginalizados, considerados sub-representados na grande mídia. Trata-se, portanto, de iniciativas que pregaram um modo alternativo de se colocar frente ao modelo dominante, provocando questionamentos, formando correntes de resposta e deixando novos legados.

No contexto brasileiro, sites autointitulados como alternativos, como é o caso da Agencia Pública, da Ponte Jornalismo, do Coletivo AzMinas e do Coletivo Jornalistas Livres, por exemplo, descrevem suas missões de modos equivalentes. Além disso, é possível observar vários pontos em comum nos seus conteúdos: As pautas, geralmente, confrontam a estrutura midiática monopolizada, priorizando uma postura crítica sobre os seus modos de representação, num claro posicionamento em favor da defesa dos direitos humanos e da denúncia de abusos de poder gerada por grandes empresas ou organismos do estado. Ao dar voz às minorias representativas invisibilizadas, essas iniciativas buscam recuperar o olhar da sociedade sobre si própria, se empenhando continuamente pela deslegitimação da desigualdade social e da violência contra grupos marginalizados. O trabalho busca o empoderamento desse público, através da publicização e da desnaturalização de injustiças e opressões vividas pelos segmentos mais vulneráveis. A linguagem utilizada na construção noticiosa também é renovada. Por meio de uma modulação do arsenal racionalista tão frequente na escrita jornalística hegemônica, é possível encontrar uma apreensão mais poética, sensível e subjetiva da realidade, por meio narrativas menos rigorosas, menos presas às informações numéricas, as mensurações e as descrições objetivas. Além disso, ao anunciarem que abrem mão do lucro, esse veículos se colocam a favor do recebimento de verbas vindas de organismos independentes, como fundações e institutos, além de apoio econômico através de campanhas de financiamento coletivo.

Entendemos, pela intenção política, muitas vezes declarada, de uma contribuição para um novo tipo de participação e rearranjo social, que o jornalismo alternativo atual emerge das múltiplas frentes de economia solidária, integrando um vasto conjunto de iniciativas populares.

Colaborativos e autossustentáveis, os sites de jornalismo alternativo no Brasil operam além dos mecanismos de busca de lucros e, ao dar voz a grupos marginalizados, tematizam vários aspectos da política neoliberal, desafiando sua lógica globalizada através da ampliação de uma compreensão coletiva, para uma análise sobre os seus impactos sobre diferentes campos sociais. Emergindo da lacuna deixada pela grande mídia, o jornalismo alternativo abandona a mercantilização da informação, objetivando a criação de um novo espaço noticioso, que opera em sinergia com um conjunto de valores muito mais voltado ao bem comum.

O jornalismo alternativo contemporâneo possui, portanto, uma marca bastante sensível e se configura a partir de um estatuto completamente novo e inconcebível ao paradigma tradicional na atualidade. A partir de um modo de produção noticiosa que ultrapassa o papel de mediadora, se afirma como parte inexorável do próprio campo social, se constituindo com base numa vivência constante, crítica e aberta aos rearranjos e enfrentamentos coletivos frente ao modelo político-econômico que se impõe.

Elisangela Colodeti é mestre em Comunicação Social pela PUC Minas, na área de concentração Interações Midiáticas. Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2005), com especialização em Gestão Estratégica da Comunicação, pela PUC Minas (2009) e História e Culturas Políticas, pela Universidade Federal de Minas Gerais (2012). Foi repórter e apresentadora na TV Globo Minas. Atualmente é professora, pesquisadora, assessora de comunicação e produtora de conteúdos web.

Bibliografia

ATTON, Chris. Alternative media. London: SAGE, 2005 ATTON, Chris; HAMILTON, James F. Alternative Journalism. Londres: SAGE Publications Ltd, 2008. BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Caleidoscópio política e mídia. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

CARVALHO, Guilherme. Jornalismo Alternativo na era digital: reportagens da Agência Pública. Alterjor (ECA-USP. São Paulo. Ano 02– Volume 02 Edição 04. 2011.

DOWNING, J. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: Senac, 2002.

MORAES, Dênis de; RAMONET, Ignacio; SERRANO, Pascual. Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação. São Paulo: Boitempo, 2013. SANTOS, Boaventura de Sousa. A difícil democracia. Reinventar as esquerdas. São Paulo.: Boitempo, 2016.

SINGER, Paul. Senaes – uma experiência brasileira de políticas de economia solidádia. In: Ação Pública e Política solidária: uma perspectiva internacional. FILHO, GC de F; LAVILLE, J-L; MEDEIROS, A e MAGNEN, J-P (orgs). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.