POR: Julia Sanchez de Oliveira
A ideia desse artigo surgiu quase que imediatamente após eu sair da sessão de “Poor Things”.
Enquanto refletia a totalidade da experiência cinematográfica que acabara de vivenciar, me dei conta de que talvez o estrondoso sucesso deste filme poderia ser atribuído não apenas às excelentes performances dos atores, à direção de arte meticulosa e à fotografia envolvente, mas também por ser essencialmente parecido com “Frankenstein” de Mary Shelley.
Mesmo para aqueles que nunca se aventuraram nas páginas ou nas telas do clássico “Frankenstein”, a narrativa ressoa em nossa consciência coletiva. É uma história simbólica sobre a relação entre criador e criatura, onde o cientista Victor Frankenstein, dá vida a um monstro por meio da junção de pedaços de vários cadáveres. A repulsa e o horror diante da sua própria criação levam Frankenstein a abandonar a criatura à sua própria sorte, desencadeando uma jornada de autoconhecimento e vingança para a criatura abandonada.
A história foi publicada pela primeira vez em 1818, com o nome da autora mantido em anonimato. Foi somente em 1823 que Mary Shelley, a mente brilhante por trás do escrito, assumiu a obra, contudo, foi na versão relançada de 1831 que a história encontrou sua forma mais completa. Mais de dois séculos depois, é fascinante observar como a narrativa continua a exercer seu poder de influência sobre inúmeras obras audiovisuais e literárias, provando sua relevância atemporal.
O enredo, contado de forma potente pela autora, revela um dilema ancestral da humanidade: a difícil relação com a perda, a rejeição e o confronto com a morte. A narrativa reflete como um eco das experiências pessoais da autora, marcada por tragédias e desafios emocionais. A perda prematura da mãe, seguida pela rejeição e exílio do convívio familiar, culminando na dolorosa perda de seu próprio filho, tudo isso repercute na trama do romance gótico.
É extraordinário observar como a história e os dilemas apresentados em “Frankenstein” se reproduzem através de diversas obras literárias e audiovisuais, ultrapassando gêneros e épocas. Um exemplo notável é “Pinóquio”, escrito por Carlos Collodi e publicado pela primeira vez em 1883. A história acontece a partir da jornada de um pai enlutado que recebe um presente inusitado: um pedaço de madeira falante. Com isso, ele decide construir o famoso boneco Pinóquio. À primeira vista parece uma narrativa distante de Frankenstein, mas é notório a semelhança de temas como perda e tentativa de lidar com o luto através de uma criação. Nas versões mais recentes de “Pinóquio”, encontramos até mesmo a cena da morte do boneco e sua ressurreição, evocando uma reconciliação entre criador e criatura, similar à dinâmica explorada por Shelley em seu livro.
Nos anos 2000, a Disney presenteou o público com “Lilo & Stitch”, uma obra que bebe diretamente da fonte inesgotável de inspiração que se tornou “Frankenstein”. A história, embora destinada ao público infanto-juvenil, aborda a envolvente relação entre criador e criatura. Em sua trama, acompanhamos a jornada de Stitch, uma criatura criada por um cientista que o rejeita, rotulando-o como disposto a possuir somente comportamentos destrutivos. No entanto, a história toma um rumo surpreendente quando Stitch encontra em Lilo e sua comunidade um lar e uma família, proporcionando-lhe um espaço para explorar suas emoções humanas, apesar de sua natureza não convencional. A obra “Lilo & Stitch” não apenas presta uma homenagem contemporânea e mais sutil ao legado de “Frankenstein”, mas também oferece uma reflexão atual sobre temas de identidade, pertencimento e redenção.
Entre inúmeras obras que se inspiram na narrativa de “Frankenstein”, uma em especial que merece destaque é “Edward, mãos de tesoura”, do cineasta ímpar Tim Burton. Esse filme reproduz os temas universais de identidade e aceitação presentes no romance original de Mary Shelley. Em “Edward, mãos de tesoura”, somos apresentados à narrativa de um personagem criado de maneira artificial por um ser humano, e que, assim como Victor Frankenstein, no fim acaba por abandonar a sua criação incompleta. No entanto, é possível observar um ponto de contraste em relação à criatura de Shelley, Edward é dotado de uma inocência tocante e habilidades extraordinárias, tornando-se uma figura cativante para quem o assiste. A meticulosa construção visual e narrativa de Tim Burton, aliada à colossal interpretação de Johnny Depp, fazem deste filme uma obra-prima atemporal, que continua atravessando gerações e encantando espectadores de todas as idades. Por fim, o filme de Tim Burton não é apenas um tributo ao legado de Shelley, mas também uma expressão artística única que ecoa além do gênero, explorando temas de solidão, aceitação, e mais uma vez, a busca pela identidade em um mundo que muitas vezes é cruel e incompreensível.
Não podemos concluir esta análise sem mencionar o fascinante paralelo entre o clássico de Mary Shelley e o antigo mito grego de Prometeu. Muitos escritores e críticos destacam a possível influência do mito sobre a obra de Shelley, sugerindo que Prometeu possa ter servido como uma fonte de inspiração inconsciente para a autora. A conexão entre as duas histórias é, no mínimo, intrigante: assim como o titã Prometeu desafiou Zeus ao roubar o fogo e conceder aos mortais, Victor Frankenstein assume o papel de um criador divino ao “roubar” o poder da vida e criar seres à sua semelhança. Essa dualidade entre o poder humano e divino, entre a busca pelo conhecimento e suas consequências, refletem através dos séculos, unindo essas duas histórias em um diálogo grandioso entre mitologia, literatura e os dilemas da humanidade. Essa interseção revela não apenas a profundidade das preocupações e anseios que têm assombrado a humanidade ao longo da história, mas também a capacidade atemporal dessas narrativas em provocar reflexões e debates sobre o nosso lugar no universo e as responsabilidades que procedem com o conhecimento e o poder. “Frankenstein” e o mito de Prometeu permanecem como monumentos literários e também como lembretes para nós, da complexidade e beleza do eterno conflito entre os limites da ciência, a ambição humana e o respeito pelas forças que transcendem nossa compreensão enquanto seres mortais.
REFERÊNCIAS:
FELTRIN, Tatiana. Frankenstein, ou O Prometeu Moderno (Mary Shelley). YouTube, 31 de outubro de 2021. 49 min e 32 segundos. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P4quYC-K9dE>. Acesso em: 17 de março de 2024.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. FAFICH – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
<https://www.fafich.ufmg.br/~labfil/mito_filosofia_arquivos/prometeu_epimeteu.pdf>
Julia Sanchez de Oliveira é graduanda do terceiro período de Publicidade e Propaganda da PUC Minas.