Carandiru: 30 anos do banho de sangue

Em outubro de 1992, os policiais entraram no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, vitimando 111 pessoas.

Por Pedro de Lima

Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru.
Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, que foi palco do massacre em 1992 e desativada em 2002. Foto: Arquivo pessoal

“São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, oito horas da manhã.” (Diário de um detento – Racionais MC’s)

É com essa frase que Mano Brown, em parceria com Jocenir, abre a música que relata o massacre do Carandiru, que ocorreu no dia 2 de outubro de 1992, há 30 anos. Na época, a história foi relatada por presidiários que vivenciaram toda tensão da briga entre detentos, o estopim para o início da confusão, e a invasão policial às 16 horas e 25 minutos. A ação teve uma duração de 20 minutos, tempo suficiente para que disparos e facadas deixassem alguns agentes feridos e 111 presos mortos. É importante frisar que a música Diário de um detento é uma composição iniciada por Jocenir, que começou a rascunhar a narrativa do massacre durante o período em que ficou detido na Casa de Detenção de São Paulo, em 1994. Seus relatos escritos ganharam musicalidade após chegarem nas mãos de Mano Brown, um dos vocalistas do grupo Racionais MC’s, que deu sua dose de contribuição para a letra e a fez se tornar o sucesso que foi no álbum Sobrevivendo no Inferno. Os autores da canção conseguiram captar cada elemento da rotina do presidiário, por mais que não tenham vivenciado o episódio de extrema violência. Jocenir teve a sensibilidade acolher o testemunho de sobreviventes, como fez Mano Brown, que também buscou diálogos e partilhas com amigos que relatavam situações que ocorriam internamente.

Mano Brown, vocalista do Racionais MC's, e Jocenir, ex-detento do Carandiru que transformou os relatos em texto
Grupo Racionais MC's'
Mano Brown e Jocenir
Racionais
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Estrutura da música

Para compreender a música, podemos dividi-la em partes. Na sua introdução, busca-se retratar um dia na prisão. Notamos que se trata de um cotidiano marcado pela vigilância pesada; a sensação evocada é a de que as pessoas, ali, estão sempre com a cabeça a prêmio, pois qualquer “vacilo” pode deixar os detentos em uma situação delicada: não há diferenças entre uma mera briga e uma possível tentativa de fuga. A única esperança entre eles gira em torno de expectativas em relação a suas apelações apresentadas ao juiz e à iminente liberdade.

Capa do álbum Sobrevivendo no Inferno
Álbum Sobrevivendo no Inferno, lançado em 1997, que foi um marco para a carreira do grupo. Foto: Divulgação.

No segundo momento da música, discorre-se sobre o momento que antecede o massacre. Narra-se os desdobramentos da madrugada e da parte da manhã daquele dia 2 de outubro. Na música, sugere-se uma sensação difusa de desconfiança, apesar da aparente tranquilidade. Porém, inicia-se a confusão entre detentos. O que começou com uma briga entre dois presos tomou uma proporção maior, incapaz de ser controlada pelos agentes penitenciários. As ações desencadearam uma rebelião, e o comando do presídio demandou a intervenção da polícia, supostamente para tentar negociar e acalmar os ânimos.

Como se sabe, a negociação, que durou das 14h às 16h25, não adiantou em nada. A PM, com sua tropa de choque, optou, então, pela invasão que durou por minutos, mas atravessou todos os andares do Pavilhão 9. Ao final do terror, noticiou-se a morte de oito detentos, mas era um número longe da realidade. O número de mortos, 111 no total, foi anunciado às 16 horas e 30 minutos do dia 3 de outubro, um sábado mobilizado por eleições municipais.

A música se encerra com o seguinte questionamento: Mas quem vai acreditar no meu depoimento? Dia três de outubro diário de um detento. A pergunta, justa, nos lembra que a palavra de um preso vale pouco numa sociedade encarceradora e desigual. O relato sempre corre o risco de cair em esquecimento.

Cobertura da imprensa

As reportagens que buscaram cobrir o massacre buscaram questionar suas motivações. Almejava-se compreender se a ação bruta da PM foi de fato necessária. Não foram raras as coberturas que trabalharam dentro de uma linha mais sensacionalista.

No jornalismo impresso, por exemplo, podemos destacar a atuação da Folha de S. Paulo, que repercutiu o evento por alguns dias, detalhando cada passo das ações policiais e investigativas. Em um primeiro momento, porém, o veículo foi omisso em reação ao número real de mortos. Já o Estadão, por sua vez, priorizou a falta de condução dos julgamentos e apontou as punições já recebidas por alguns responsáveis pela chacina. O jornal prioriza os acontecimentos em torno dos policiais. Abaixo, nota-se um trecho de uma matéria da cobertura, que traz uma entrevista com o responsável por chefiar a tropa de choque da polícia à época, o Coronel Ubiratã Guimarães. Clique aqui para ver mais.

Entrevista do Capitão Ubiratã Guimarães para o jornal.
Fala do Capitão Ubiratan Guimarães ao jornal Estado de São Paulo.

Após 20 anos da tragédia, encontramos um material robusto do site Terra (clique aqui), que nos auxilia a entender a estrutura do presídio, o massacre, a ação da PM e a ação de Luiz Antônio Fleury Filho, Governador do estado de São Paulo no ano da tragédia. Esse material é fruto dos avanços tecnológicos dos meios digitais. Ferramentas de edição de arte nos possibilitam ter uma visão e uma imersão mais amplas dos ocorridos. Clique aqui para ver mais.

Print do site Terra sobre os 20 anos do massacre do Carandiru
O site Terra, no ano de 2012, traz um material vasto sobre o massacre e com dinamismo. Imagem: Print.

30 anos se passaram e é possível observar o aprofundamento sobre o assunto. Alguns portais produziram reportagens relembrando o acontecimento, mas principalmente pontuando alguns desdobramentos. Afinal de contas, os policiais ainda não foram julgados. Existia, na verdade, um projeto para anistia-los, que foi barrado pelo Supremo através da autoridade de Luís Roberto Barroso. A produção do portal G1 buscou registrar essas fatos. Clique aqui para ver mais.

Print do site G1
O site G1, do grupo Globo, trouxe um longo texto sobre os 30 anos do massacre do Carandiru. Imagem: Print

Outras formas de relato

Trabalhamos, aqui, duas formas de relato: a música cantada pelos Racionais MC’s e as reportagens que cobriram a tragédia. Isto posto, os relatos dos ocorridos no Carandiru são amplos e vastos, e citaremos aqui mais algumas delas.

O filme Carandiru (Hector Babenco, 2003) conta a história dos dias vividos na prisão e atuação do médico Dráuzio Varella, autor do livro que deu origem ao longa. Outros livros também buscaram recontar o cotidiano dos detentos. O próprio Jocenir é autor de um livro homônimo à música cantada por Mano Brown.

O que notamos em toda essa trajetória é que uma tragédia dessa proporção tem diversas formas de relatos, que serão trabalhados das mais diversas maneiras, da forma mais musical, até a forma mais literal através dos relatos daqueles que sobreviveram. Em algumas situações, essas narrativas serão erigidas a partir da intermediação de pessoas próximas; em outras, através memórias próprias, que mantêm viva a necessidade de justiça.

O Carandiru

Se o massacre completa 30 anos em 2022, existe efeméride envolvendo a Casa de Detenção, que é a sua desativação e implosão, no ano de 2002. O Carandiru foi desativado e alguns pavilhões implodidos, cedendo assim espaço para um parque, que é conhecido como Parque da Juventude.

Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru.
Implosão do Pavilhão 9
Arco presente no Parque da Juventude
Presídio Carandiru
Implosão do Carandiru
Parque da Juventude
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