Por Nicole Antunes de Souza Oliveira.
Inúmeros debates são realizados em uma tentativa de desvendar o papel das representações midiáticas. Projetos cinematográficos, em particular, dinamizam nossa cultura, propondo reflexões e impressões sobre a realidade que nos cerca. Com isso em mente, compreendemos a habilidade do cinema em construir, desconstruir, afirmar, desenvolver e negar certas identidades através de suas histórias.
Os avanços tecnológicos criaram mudanças tanto dentro da indústria cinematográfica, quanto no comportamento social. Atualmente, jovens e crianças passam a maior parte de seu tempo com aparelhos eletrônicos, reafirmando a necessidade de se ter, cada vez mais, representações reais de diferentes povos e culturas. O longa metragem animado Luca (2021), dirigido por Enrico Casarosa, é fruto desse contexto de novas urgências. A história acompanha Luca, um menino metade peixe e metade humano que sempre sonhou em viver na superfície. Em uma vila italiana fictícia, Portorosso, desenvolve-se a trajetória desse herói. No cenário, pequenos detalhes, como os trajes, comportamentos e falas, refletem o cotidiano da cidade, revelando aos expectadores aspectos da cultura local.
Entretanto, a maioria das representações de povos latinos e orientais são construídos a partir de um estereótipo há muito inadequado. O termo “estereótipo” se refere a opiniões e visões elaboradas a partir de uma ideia do senso comum, generalizando e pré-definindo um indivíduo quanto ao seu gênero, cultura, aparência, classe social, e dentre outros aspectos.
Apesar da proximidade geográfica entre países latino-americanos e os Estados Unidos, as narrativas produzidas no Norte Global ainda revelam distanciamentos. Diversos personagens latinos são marginalizados e criminalizados em produções mainstream. É o caso, por exemplo, das personagens Tony Padilla, da série Os 13 Porquês (2017), e Rio, de Good Girls (2018), produções originais da Netflix. Elas nos oferecem o “típico” perfil latino: criados em uma comunidade simples, com imigração ilegal aos EUA e passagem pela polícia; são, na maioria das vezes, trabalhadores braçais. Rio foi construído para ser justamente este estereótipo latino, uma vez que a série aborda, de forma peculiar, a lavagem de dinheiro. O incomodo surge justamente ao constatarmos a reafirmação de latinos como automaticamente conectados ao mundo do crime. Já Tony, inserido em uma série na qual o grande enfoque é o suicídio e a depressão, tem suas características estereotípicas menorizadas, embora elas estejam presentes. De qualquer forma, trata-se de uma personagem marcante, uma vez que é a única personagem latina com falas dentro da série. Marcados pela audácia de conseguirem o que querem, mesmo tangenciando ilegalidades, Tony Padilla, Rio e tantas outras figuras masculinas ficcionais reafirmam o suposto perigo que assinala as experiências dos homens latinos.
Já para as mulheres, há um estereótipo distante da criminalização. Aos olhos de realizadores estadunidenses, existem apenas duas possibilidades de aparição para as mulheres latinas: no primeiro caso, destaca-se um tipo de personagem com uma condição financeira favorável, possível graças ao casamento com um homem já bem-sucedido. Neste caso, as mulheres são geralmente representadas com corpo escultural e com um temperamento incontrolável. Há, também, a figura da empregada latina, uma mulher já “madura” e pouco atraente, frequentemente aparecendo em segundo plano. Excelentes exemplos são as personagens Glória Delgado, da sitcom Modern Family (2009), e Val, do filme Que Horas Ela Volta (2015). Glória ocupa o cargo da latina atraente, com curvas acentuadas, que se depara com situações cotidianas que realçam seu temperamento “esquentado”, enquanto Val é a perfeita empregada latina. O intuito do filme brasileiro onde Val ocupa o papel de personagem principal, é justamente retratar o cotidiano de inúmeras diaristas brasileiras, vindas de comunidades simples para trabalharem na casa de alta renda, é costumeiro vermos as empregadas ocupando a figura materna para os filhos de uma família onde os pais passam a maior parte de seu tempo trabalhando.
Porém, algumas produções recentes tentaram se aproximar de maneira mais complexa da cultura latina. O filme animado Viva: a vida é uma festa (2017), dirigido por Adrian Molina e Lee Unkrich, encantou o público ao trazer as cores vivas e a alegria da comemoração para o feriado mexicano do Día de Los Muertos, finados no Brasil. Por sua vez, Jane the Virgin (2014), uma sitcom inspirada na teledramaturgia típica latina, quebra inúmeros padrões do estereótipo ao trazer uma comédia com raiz na telenovela, drama marcado com o exagero. A história acompanha Jane Villanueva (Gina Rodriguez), uma virgem artificialmente inseminada por acidente, cujos desdobramentos proporcionam reviravoltas de tirar o folego. Já One Day at a Time (2017), outra sitcom, se encaixa nos padrões de comédia estadunidenses, porém com um toque cubano. Acompanhando a rotina de três gerações de uma mesma família, é uma série pouco valorizada considerando a riqueza em seu enredo, que mostra a forma única de cada personagem encarar a cultura materna, neste caso, a cubana.
Em um mundo cada vez mais conectado e interligado, a mídia vem tomando um espaço significativo em nosso cotidiano. Com os discursos de ódio sendo normalizados nessa transição de geração, é de suma importância ensinar aos jovens a respeitar as mais diversas culturas, independentemente de sua origem. No cinema atual, insistir em estereótipos rebaixadores já não é algo bem aceito, o que sinaliza os primeiros passos de uma possível mudança.