Análise Crítica | O Gambito da Rainha

De prodígio à potência: a conturbada jornada de uma garota no mundo do xadrez 

Por Anna Luiza, Joice Bianca, kessy Dias e Victória Rehfeld.

Foto: divulgação/Netflix: Anya-Taylor Joy em ‘O Gambito da Rainha

Uma criança com um passado conturbado descobre um dom. Com a ajuda de um mentor, aperfeiçoa esse dom até partir em uma jornada em busca de ser a melhor, onde encontra aliados e enfrenta inimigos até provar do que é capaz. Superficialmente “O Gambito da Rainha”, minissérie da Netflix de 2020, pode parecer uma jornada do herói. Olhando com detalhe, percebe-se uma história bem mais profunda sobre uma mulher que conquista seu lugar no mundo do xadrez em uma época em que esse espaço era predominado por homens. 

Com uma linda cena de abertura, a minissérie consegue mostrar simultaneamente o talento de Beth, a obsessão pelo xadrez e seu posterior vício em pílulas. A série mostra, ao invés de contar, e comunica perfeitamente como retratar uma mulher empoderadora na tela sem a necessidade de tentar mostrar que ela não tem fraquezas. Beth precisa vencer não apenas desafios externos como o sexismo, mas também conflitos internos relacionados a vícios. Tudo isso carregado muito bem pela atriz Anya Taylor-Joy que faz o papel da protagonista Elizabeth Harmon. A história, apesar de parecer real, é apenas ficção, mas a protagonista é comparada ao mestre de xadrez Bobby Fischer.

A obra é situada nos anos 1960, onde o esporte do xadrez era predominantemente masculino e, por isso, a personagem Elizabeth é constantemente desmerecida pelos outros competidores homens. Apesar de haver categorias femininas, a ideia absurda de ter uma divisão de sexo em um esporte totalmente intelectual já demostra a visão segregadora da época em que se afirmavam diferenças cognitivas entre homens e mulheres. A falta de incentivos e estímulo às mulheres é inclusive retratada na mãe adotiva de Beth, Alma, interpretada pela atriz Marielle Heller. Alma toca piano com excelência e poderia muito bem ter sido uma grande pianista, não fosse seu aprisionamento em um casamento abusivo. 

A obra surpreende aqueles que acham o xadrez monótono, pois consegue trabalhar o jogo muito bem para não deixar nada maçante. A série possui uma fotografia ambientada nos anos 60, simétrica em seus planos, e uma trilha sonora que consegue segurar bem a tensão das jogadas e manter o espectador preso e atento. A direção em algumas partes das cenas deixa de mostrar o tabuleiro e as jogadas, privilegiando planos em close up que revelam a reação e os olhares de Beth e de seus adversários. Os planos-detalhe das peças deixam a cena ainda mais plasticamente bonita. Mesmo quando não há trilha, o silêncio é muito bem-feito com apenas o som dos tiques do relógio e das peças sendo movidas ao fundo. A forma como a narrativa é construída traz aos espectadores a vontade de jogar xadrez, ou de pelo menos querer conhecer um pouco sobre o jogo.

O foco da narrativa, contudo, não é o xadrez. Ela traz temas como abandono, dependência química e alcoólica, desigualdade de gênero e machismo. No percurso, o espectador acompanha a trajetória e o amadurecimento da protagonista. Já no início da série, vemos como a infância de Beth foi conturbada, e como esses traumas a acompanharão até a sua fase adulta. 

O piloto contextualiza a infância da personagem e o início de sua relação com pílulas tranquilizantes. O enredo começa com Beth já adulta em uma situação de conflito onde ela toma os comprimidos com bebida, dois vícios que serão trabalhados na história, juntamente com a sua paixão pelo xadrez. Elizabeth é uma sobrevivente de um acidente de carro onde estava com a mãe, que morreu deixando-a órfã.  A mãe aparece ao longo da minissérie por meio de flashbacks e assim vamos entendendo melhor sua relação com a filha e o contexto do acidente – suicídio e uma tentativa de homicídio. Tendo que morar agora em um orfanato, a garota conhece outros dois personagens que vão ser importantes para sua trajetória. Sua amiga Jolene, interpretada pela atriz Moses Ingram, e o zelador senhor Shaibel, responsável por ensiná-la xadrez no porão do orfanato, interpretado pelo ator Bill Camp

O luto sofrido pela perda da sua mãe biológica e o abandono do pai biológico e do pai adotivo refletem na sua personalidade e estados emocionais. A falta de apoio paterno, leva Elizabeth a encontrar conforto em Shaibel. Até o final da narrativa é sempre mostrada a sua gratidão pelo o apoio que recebeu dele, mesmo quando Beth revela-se fria e cabeça dura, arrogante e com dificuldade de lidar com os seus sentimentos. Sua mãe adotiva, também sofre de episódios depressivos e, a princípio, não consegue estabelecer uma relação de mãe e filha com Harmon, até que descobre o talento da filha e vira uma grande incentivadora da sua trajetória. O espectador não sabe se Alma realmente apoiou Beth por afeição, ou se por interesse em virtude do retorno financeiro que o xadrez trazia (ou as duas coisas). A mãe adotiva também sofria com dependência química e alcoólica, e era bastante liberal, chegando a oferecer bebida para Beth, colaborando com o vício da personagem.

Durante o amadurecimento para a fase adulta, a trajetória é colocada cronologicamente, adversário por adversário, mudando de antagonistas a cada fase que ela alcança no jogo. Por fim, para se tornar a número 1 e provar que venceu os seus vícios, Beth precisa enfrentar o russo Vasily Borgov, melhor jogador do mundo.

Os russos, são os chefões do xadrez na obra e também fora da tela, já que o país tem o maior número de grandes mestres. Não haveria, portanto, melhor adversário final para Beth do que um russo.  O motivo deles serem os antagonistas tem uma explicação política e histórica, já que, após a Revolução Russa, Lênin, um amante do xadrez, passou a promover o esporte no país. A partir de 1922 com a formação da URSS, o Estado começou a investir na formação de enxadristas que se iniciavam ainda jovens. Como resultado dos investimentos, os jogadores soviéticos dominaram os campeonatos mundiais até 1991, quando houve a dissolução da União Soviética. 

Além de ser uma minissérie de qualidade por conta de seu enredo e personagens bem trabalhados, a obra também se destaca pelo trabalho impecável com o figurino que “participa” do enredo, sendo uma parte importante dessa história. A série é ambientada nas décadas de 50 e 60, épocas importantes para a moda, pois foram tempos de mudanças e evoluções na cultura e na sociedade pós segunda guerra mundial, além da expansão do capitalismo em países como EUA, que começaram a ver na indústria da moda uma forma de lucrar.  

A relação da protagonista com a moda vai muito além da estética. Até o momento em que Beth é adotada, percebe-se sua falta de interesse por moda, já que, até então, ela vive em um orfanato onde todas as crianças se parecem. Porém, quando entra em contato com o exterior e reconhece esse novo mundo em que passa a viver, a personagem sente a necessidade de mudar e esquecer seu passado. Ela quer fugir de tudo o que passou, e por isso começa a se vestir de forma diferente, como uma maneira de mentir para si mesma. 

No primeiro episódio, Beth está usando um vestido com seu nome bordado, feito por sua mãe. A cor deste vestido representa a sensação de “lar” de Beth. Ela está usando um vestido da mesma cor em seu torneio final em Moscou, o que dá uma sensação de “voltar para casa”. O figurino mostra que ela finalmente se sente confiante e que sua mãe está com ela. Neste momento, ela não tem medo do homem que mais temia. No começo, é uma cor que a deixa muito frágil, mas, no final, a mesma cor é sinal de sua força; é um símbolo de um regresso a casa.

 Essa relação com a moda passa por vários estágios até vermos sua forma final, quando Beth está completamente entregue a esse novo mundo. Durante essa evolução, vemos vários estilos, cortes de cabelo e maquiagens, cada vez mais sofisticados. A figurinista da série, Gabriele Binder, faz um excelente trabalho nessa condução do figurino, que reflete bem os momentos da vida de Beth Harmon. 

A série é conduzida de uma ótima maneira, onde, como espectadores, somos cativados pela personagem e buscamos saber não só quem, mas como Beth vence, e como suas vitórias e derrotas e as lições que ela aprende ao longo do caminho, servem como referência enquanto acompanhamos a tumultuada jornada de Beth de prodígio a potência.

O Gambito da Rainha (The Queen’s Gambit | EUA, 2020) Netflix

Criação: Scott Frank, Allan Scott

Direção: Scott Frank

Roteiro: Scott Frank

Elenco: Anya Taylor-Joy, Isla Johnston, Annabeth Kelly, Bill Camp, Moses Ingram, Christiane Seidel, Rebecca Root, Chloe Pirrie, Akemnji Ndifornyen, Marielle Heller, Harry Melling, Patrick Kennedy, Jacob Fortune-Lloyd, Thomas Brodie-Sangster, Marcin Dorociński

Duração: 7 episódios – 50 minutos em média cada episódio – total de 393 minutos para a minissérie

Trabalho produzido para Narrativas seriadas, do curso Cinema e Audiovisual

3 comentários em “Análise Crítica | O Gambito da Rainha

  1. Depois de ler a crítica super bem construída, clara e referenciada, vou assistir (de novo) com outros olhos – mais atentos às nuances da tumultuada (e nada monótona) vida de Beth.

  2. Bom dia!! eu particulamente acho o filme muito interessante,atriz excelente,uma historia real que acontece com a maioria dos adolescentes ou regeitados pela mae, ou esquecido em orfanatos. Falo em relacao aos traumas e a precococidade, que acontece quando o nosso berÇo e aliceces sao tirados, só quem vivi o abondono e a perca de pais e maes precocimente entenderam, que bom que a atriz se inclinou para algo produtivo algo…que tras crescimento. intelecto pois sabemos que a realidade de quem e bodonado e outra, que os filhos e filhas de maes abondonados que tenham a oportunidade de assistir esse filme, crescam em suas vidas e sejam seus protagonista indenpendente de quais quer situçao em relacao ao preconceito por ser menina acho que nao… por ser menina mas por ser inteligente, autentica a boa no que faz, isso tambem tem preconceitos ninguem quer ninguem melhor que voce. estou amando a serie Grata!!!!

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