Por Júlia Horta.
A experiência de ser mulher em uma sociedade regida pelo patriarcado e pela dominação masculina consiste em viver com amarras que são impostas desde o nascimento. Não é de hoje que a definição dos papéis sociais do homem e da mulher acarreta discursos discriminatórios, assim como prisões individuais e coletivas que limitam a expressão de certos sujeitos. Desde os primeiros passos, cai sobre o colo das mulheres um manual de regras a serem seguidas: são ensinadas, por exemplo, a como cuidar de uma casa ou a forma correta de se portar dentro e fora de seu lar. Ainda que experimentem uma educação progressista em casa, quando a necessidade de encarar o mundo aparece fica evidente que a cultura machista está enraizada nos ideais sociais e distribui uma série de obrigações e implicações para todos os gêneros. Entretanto, é evidente que homens cisgêneros, heterossexuais e brancos detêm privilégios dentro desse sistema.
A cineasta tcheca Vera Chytilová produziu, na década de 60, o longa-metragem Algo Diferente, obra delicada e realista, que se faz urgente e necessária ainda nos dias de hoje. O filme evidencia complicações impostas pelo machismo e enfatiza o lugar de submissão que as mulheres ocupam diante dos homens, questões que o século XXI ainda não conseguiu resolver completamente. A figura do homem cisgênero, heterossexual e branco continua sendo dominante; as mulheres, por sua vez, ainda sofrem com as consequências advindas do machismo. Contamos com altas taxas de feminicídio, os homens seguem sendo maioria nos cargos de poder, há uma profunda diferença salarial, corpos femininos são hiperssexualizados e as mulheres são obrigadas a ter uma jornada tripla de trabalho: fora de casa e, ainda, como donas de casa e mães.
O filme de Chytilová, Algo Diferente, retrata paralelamente a história de duas mulheres, Vera, uma dona de casa, e Eva, uma famosa ginasta olímpica. O espectador é levado a acompanhar a rotina das protagonistas e a entender quais são as dificuldades, os medos, os cansaços e as particularidades envoltas na vida de cada uma. Apesar das histórias das personagens não se cruzarem diretamente na tela, Chytilová constrói delicadamente um elo entre as duas a partir da presença de personagens masculinos como figuras dominantes na vida de ambas. Vera, na figura de esposa, dona de casa e mãe, é pressionada pelo marido nos afazeres domésticos e recebe inúmeras críticas na sua forma de criar o filho, mesmo sendo a única do casal que se empenha em tal função. A personagem sempre aparenta estar exausta em assumir os três papéis em tempo integral, sem espaço para exercer sua individualidade e vivendo um casamento em que o marido não se faz presente como companheiro e pai. Eva, por sua vez, vivencia um mundo diferente do de Vera, mas como mulher não deixa de ser marcada pela pressão do marido, que a todo momento cobra a perfeição de Eva como ginasta e não manifesta acolhimento para que ela demonstre suas inseguranças.
O longa-metragem exerce a função de desafiar e questionar o papel da mulher dentro da sociedade. O espectador é levado a encarar as rotinas maçantes e estranguladoras que as personagens vivenciam, estimuladas pelas amarras sociais e pelo posicionamento dos homens que as rodeiam. A diretora do filme cria um dia a dia para essas mulheres com pouco espaço de fuga; os ambientes delimitados e escassos, o que reforça a sensação de sufoco de viver uma vida pautada nas regras sociais. Rompe-se com a ideia de que uma mulher é completamente realizada quando constrói uma família e assume a figura de esposa, mãe e dona de casa, principalmente quando se torna submissa a seu companheiro.
Vera é anulada como mulher e como indivíduo que tem seus sonhos, vontades, desejos e ambições; é colocada na maior parte do filme como uma máquina, que tem que suportar a falta de afeto e a rotina de uma família sozinha. Chytilová utiliza recursos de montagem e enquadramentos do corpo da personagem para realçar o cansaço e a falta de emoção, surpresa e felicidade que tomou conta da vida de Vera. O espectador se depara com movimentos e uma trilha sonora repetitivos que elevam a sensação de esgotamento. É uma forma de quem está assistindo à obra experimentar a rotina de frustração que a protagonista vivencia.
A vida da personagem é tão emocionalmente exaustiva, que ela aparece ao longo do filme dependente de qualquer resquício de carinho para fugir do poço de descontentamento em que sua vida acabou entrando. Entretanto, a personagem encara uma nova jornada quando, um certo dia, ela sai de casa para respirar com um pouco de liberdade e acaba conhecendo um homem misterioso, iniciando mais tarde um caso extraconjugal com ele. Entretanto, o que seria uma forma de escape da sua vida monótona e repetitiva, acaba virando mais uma prisão, com promessas jogadas ao vento. A protagonista adentra outra enrascada, pois vive um relacionamento não saudável, escondido e que acaba a deixando presa em outro contexto exaustivo. Ela é obrigada a carregar para si toda a carga emocional que do homem com quem está se envolvendo, que é alcoólatra, agressivo e a aprisiona em um relacionamento abusivo.
O momento em que Vera vive um novo “romance” é quando o público tem a oportunidade de conhecer um pouco mais da personagem e suas particularidades, sem a família como plano de fundo. Contudo, logo Vera é apagada novamente em sua individualidade para suprir as necessidades e vontades de seu amante. Dessa forma, fica muito claro que o objetivo da diretora é mostrar como os ciclos de anulação da mulher se repetem e não são uma exceção de um relacionamento sem paixão. As mulheres vivem da forma que o patriarcado impõe, em função do homem, seja ele um marido, amante ou filho. A história de Eva, a ginasta olímpica, corrobora para reforçar essa ideia, já que ela treina exaustivamente para atender as expectativas de seu companheiro e treinador.
Assistir o longa-metragem de Vera Chytilová e não fazer um paralelo com a realidade é impossível. Quantas Evas e Veras não existem espalhadas pela sociedade? Mulheres cheias de sonhos, objetivos e vontades, que acabam sendo esmagadas pela ação do machismo. É comum que muitas mulheres abdiquem de seus sonhos e projetos pessoais para atender as demandas dos homens que as cercam, reforçando o ciclo de dominação masculina que vivenciamos há séculos.
Júlia Horta é graduanda do 3° período do curso de Cinema e Audiovisual da PUC Minas.