A quem confessar? (O Irlandês, de Martin Scorsese)

Por Fábio de Carvalho. Nos perguntamos a quem a narrativa de Frank Sheeran (Robert De Niro) se dirige em O Irlandês (2019). Uma câmera em movimento nos detêm sobre os corredores de um asilo para idosos e encontra seu destinatário. O enquadramento, remetendo a abordagem de uma entrevista, revela a cadência de uma fala que paulatinamente elabora múltiplas linhas do tempo e condições de um rosto transfigurado pela vida. O envelhecimento desse rosto, embora aconteça contra as probabilidades, não é precisamente uma vitória. Se o protagonista espera evadir e burlar as instituições da lei por 3 horas e meia, fundamentalmente em O Irlandês o confronto mais temível é com ele mesmo. Para um filme construído sob dezenas de situações de diálogo plano/contra-plano, esse enquadramento dos primeiros minutos, e que ocorre algumas vezes, vai se tornando cada vez mais importante. O contra-plano ausente, que sequer existe, é de um vazio gigante.

Quando não existem mais os diálogos próximos e ritmados, falta-nos a oportunidade de contemplarmos mais um rosto – e são muitos. Cobertos de sangue, suados, de orelhas grandes, entradas capilares e rugas. Um rosto sorri para o outro e está fundada a simpatia que conecta os personagens de Joe Pesci e De Niro. Esses momentos humanos produzem o sentido de pertencimento dos personagens de O Irlandês em suas máfias italianas ou judias. Subitamente nos lembramos das cenas nas quais a violência gráfica explode em agilidade acentuada. Alguns tiros, alguns gritos, um carro desaparecendo em fuga na noite, e mais uma arma desovada na água fria do rio ou do mar. É tudo rápido demais e, de fato, as mortes são como que enterradas na consciência desses personagens, afundadas em águas profundas, silenciosas e internas. Na narrativa são os rostos, as superfícies onde brilham as luzes (dos olhos), que ganham importância. As atrocidades dos personagens passam trivialmente pelas narrativas, e não representam aquilo que os une. O sentido nas sequências de cortes rápidos e coreografados de brutalidades, mais do que subserviente a estilização vazia da violência, é intrínseco a rememoração de Frank.

A  violência é um vazio. O invólucro das conspirações que desembocam na morte de vários personagens é minucioso, a câmera passeia pelos ambientes apresentando ao espectador os enquadramentos de interesse, antecipando as mortes por alguns minutos, até que as execuções acontecem numa velocidade vertiginosa. Tirar uma vida é algo mínimo, o instante antes e depois se misturam na agilidade do movimento que precipita a percepção da vítima, mas antecipa a possibilidade de recuo do perpetuador. A sangue frio, Frank Sheeran distribui balas em vários corpos durante o filme. Esses momentos são breves e pouco reflexivos, sendo seguidos pelo baluarte dos restaurantes italianos e rostos calorosos, ou pela longa viagem estrada afora, ou com o corpo imobilizado pela cadeira de rodas. Os contrates entre essas temporalidades evidenciam e antecipam o teor moral que inevitavelmente cairá sobre Frank. Em cada uma delas, o personagem parece mais sozinho, mais desconectado. Ao se despedir de seu melhor amigo, ele finalmente está completamente sozinho com sua consciência. Não existem mais cúmplices.

É como se uma festa gigante chegasse ao seu final, e a narrativa de Sheeran pela repetição revela o absurdo de sua própria existência. Vá para tal lugar, faça tais coisas, plante uma bala no crânio de alguém, volte para casa. O momento de maior explicitação dessa economia do tempo está na sequência do assassinato de Jimmy Hoffa (Al Pacino). Enquanto História, é o momento onde um personagem político de importância cairá no esquecimento – sua morte permanecendo um mistério. Enquanto momento pessoal do protagonista, é a perda de qualquer resquício de glamour ou sentido que havia no seu fazer. O desejo de projeção megalomaníaco de Hoffa é silenciado por aqueles que primeiramente o ajudaram a chegar naquele lugar. O sentido moral dessa sequência é menos interessante que as suas imagens em si. Para um filme tão ávido em se cercar de rostos e extravagâncias visuais, aqui impera um bairro deserto, cinza e silencioso. A câmera finalmente se atenta a esse ao redor vazio.

Quaisquer emergências do barroco, extravagância católica e voluptuosa do cinema de Scorsese,  nos remete à ênfase daquele plano, órfão de um contra-plano. Nos perguntamos mais uma vez, a quem afinal se dirige a narrativa de Sheeran. Sua voz, dispensada a nós espectadores, posa a questão primordial. Saber se estamos dispostos a ver e ouvir, isso ainda importa. Que a moral exerça seu papel diante de um assassino; que a família nunca o perdoe; que os amigos tenham ido embora. Independente de tudo isso,  nossos olhos estiveram presos ao ritmo da tela. Talvez seja só isso que realmente possa emergir de um filme como O Irlandês. O prazer de um relato que atrai, e trai seu espectador, pelo seu voraz consumo da vida.

Fábio de Carvalho é monitor do CCM e graduando em Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.

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