A profética e assustadora verossimilhança em A Nuvem Rosa (2021)

Por Luís Machado.

Após dois anos e meio de pandemia, passamos a encarar um novo tipo de realidade, e até nos acostumamos com ela. Viver em isolamento pode ter sido sufocante e desolador, mas, com o tempo, a vida em quarentena imposta à população mundial converteu-se ao novo comum. O contato humano tornou-se escasso e as telas frias das videochamadas se concretizaram como uma necessidade. As nuances dessa carência por qualquer interação estão presentes no filme A Nuvem Rosa (2021).

Dirigido por luli Gerbase, o longa-metragem narra a vida de Giovana (Renata de Lélis), atravessada pelo surgimento de um misterioso gás tóxico na Terra, a chamada Nuvem Rosa. Devido a ameaça de morte, ela é obrigada a ficar presa no apartamento de Yago (Eduardo Mendonça), quem acabara de conhecer. Os dois se veem forçados a conviver como um casal de quarentenados, ao ponto de construírem uma família naquele microuniverso. Contudo, à medida que o laço entre eles se fortalece, Giovana se sente cada dia mais aprisionada, enquanto Yago se aliena na mesma proporção. 

Curiosamente, a obra de Gerbase se distancia dos filmes hollywoodianos que abordam catástrofes naturais. Ao contrário de produções que conversam diretamente com o contexto da Covid-19, como Contágio (2011), de Steven Soderbergh, a ameaça presente em A Nuvem Rosa atua de maneira muito mais letal, ainda que sutilmente. Somente alguns segundos diante da névoa já bastam para levar um indivíduo a óbito. Não existe margem alguma para sair de casa. Dito isso, a diretora se propõe muito mais a discutir as relações interpessoais que se estabelecem por consequência de um rigoroso isolamento, do que a abordar o problema numa escala global. E é nessa escolha que ela nos surpreende, ao coincidentemente expor situações comuns a todos nós, sobretudo depois do extenso período pandêmico. Vale ressaltar que o roteiro começou a ser escrito em 2017.

De acordo com Gerbase, para a revista digital da Abril, Elástica, “…por mais que seja uma ficção científica, é uma ficção científica intimista. A ideia inicial era: eu quero um casal que acabou de se conhecer, que passaria só uma noite juntos e de repente estão anos e numa situação absurda e sem escolha. O conceito da nuvem rosa surgiu porque eu queria um elemento mais surreal”.

A relação claustrofóbica entre as duas personagens revela como a situação se configura de uma maneira bem mais desfavorável para Giovana. Com o passar dos anos, ela se vê sufocada por papeis de gênero que não desempenharia dentro da normalidade: ser esposa, mãe e dona de casa. Ela, então, se vê impelida a esconder todos os seus desejos e objetivos para se adaptar àquele “mundinho cor de rosa”, que, embora seja visualmente agradável, revela, gradualmente, seu caráter opressor.

A ficção reverbera dados concretos da nossa realidade. Com a presença muito mais duradoura dos filhos em casa, graças ao fechamento das escolas, diversas brasileiras tiveram que conciliar o home office com os afazeres domésticos, assumindo responsabilidades de maneira desigual em relação aos maridos. E, assim como Giovana, tornaram-se extremamente infelizes.

Ao longo da narrativa, o desgaste entre o casal principal os leva a almejar a separação, tanto amorosa, quanto física, mesmo que em um espaço tão limitado. Ambos praticamente simulam um divórcio, mas desistem depois de um período, diante da persistência da Nuvem Rosa na Terra. Novamente, o filme ecoa fatos. De acordo com o CNB (Colégio Notarial do Brasil), 77.112 divórcios consensuais foram registrados em 2021. A principal causa dos conflitos, segundo Claudia Stein, doutora em direito civil da USP, foi o aumento do convívio familiar provocado pelo isolamento social. 

Outra questão importante retratada pela diretora é a nossa dependência de recursos tecnológicos, tornados, pela quarentena, dispositivos de fuga. Na conclusão da trama, Giovana se torna refém de um aparelho 3D de realidade virtual. Exausta de sua vida monótona, após tantas tentativas de salvar a sua saúde mental, a protagonista de A Nuvem Rosa encontra mais acolhimento no refúgio digital do nas próprias experiências familiares.

Com a crescente incorporação das tecnologias nas nossas rotinas, principalmente das redes digitais e da Internet, promoveu-se novas sociabilidades. Elas foram cruciais para a contenção do Covid-19, proporcionando espaços de pertencimento, mesmo que virtualmente. Todavia, as tecnologias podem ter um efeito alienante: Giovana buscou, justamente, se distanciar da dominação silenciosa que assolava o planeta. Como ela, há sempre aqueles que lidam com um acontecimento cataclísmico do pior jeito possível: negando-o.

Yago, por sua vez, se mantem constantemente numa posição de comodismo e privilégio: longe do seu pai doente, pôde formar uma família, algo que sempre desejara. O personagem para a relativizar a gravidade dos fenômenos que afetam ele e o mundo. Sua positividade fora de lugar passa a sufocar Giovana, que chega ao seu limite no fim da obra. Trata-se de um desfecho não tão distante de um Brasil impactado diariamente pelo negacionismo e pela frequente ilusão de dias melhores.

Iuli Gerbase pode até ter pensado numa ficção científica intimista, mas o que ela talvez não tenha previsto foi a sua agudeza ao precisar diferentes aspectos de uma sociedade tão adoecida e traumatizada como a nossa.   

Disponível em: https://globoplay.globo.com/a-nuvem-rosa/t/CbyrPz8JTj/ 

Ficha Técnica

Direção: Iuli Gerbase

Roteiro: Iuli Gerbase

Elenco: Renata de Lélis, Eduardo Mendonça, Kaya Rodrigues

Produção: Patricia Barbieri

Direção de Fotografia: Bruno Polidoro

Trilha Sonora: Caio Amon

Produtora: O2 Play

Bibliografia

https://elastica.abril.com.br/especiais/nuvem-rosa-filme-pandemia-sundance/

https://globoplay.globo.com/contagio/t/xSLv6CnyQv/

https://noticias.r7.com/brasil/divorcios-batem-recorde-no-brasil-e-superam-77-mil-em-um-ano-06012022

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/trabalho-e-formacao/2020/04/26/interna-trabalhoeformacao-2019,848505/sobrecarga-atinge-mulheres-durante-a-quarentena-deixando-as-por-um-fio.shtml

SOUZA, B. M.; KÓS, J. R. O habitar na pandemia da Covid-19: a transição para lugares virtuais. V!RUS, São Carlos, n. 21, Semestre 2, dezembro, 2020. [online]. <http://www.nomads.usp.br/virus/virus21/?sec=4&item=13&lang=pt>. 

https://veja.abril.com.br/comportamento/positividade-toxica-os-riscos-da-pressao-social-para-ser-feliz/

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