Por Beatriz Xavier e Sarah Cafiero.
Desde os primórdios do cinema, existem mulheres interessadas em realizar filmes, mas, ainda hoje, toda vez que é lançado um filme cujo número de mulheres na equipe supera o de homens, a iniciativa é aplaudida como novidade. O que pouco se comenta é que esforços desse tipo vêm sendo realizados há tempos, nem sempre com sucesso. Analisemos o caso da Cinematográfica Terra do Brasil:
Distante de Hollywood, no Brasil de 1951, surgiu a referida companhia, criada por Tânia Simões e Jovita de Almeida. A equipe era composta pelas duas cineastas, que se revezavam nas funções, dentro e fora do set de filmagem. Operavam nos estúdios Índios do Brasil, produzindo documentários de curta-metragem e jornais. Estrada da Vida seria o título de sua primeira ficção de longa-metragem e é claro que os jornais se interessaram pela proposta singular:
“O leitor deve imaginar qual não foi minha sürpresa ao topar com aquela simpática loira ‘mignon’ manejando uma gigantesca filmadora de ’35 milímetros, ao som dos berros de outra jovem, que gesticulava para um par elegante sentado num dos cantos da ‘boite’. Mas elas pareciam estar à vontade. Era como se uma estivesse manejando um frasco de perfume e a outra dando um gritinho à porta de casa, para chamar o irmão que jogava ‘pelada’ na rua.
— Corte, corte — bradou a gritadora, cujo nome é Jovita de Almeida — A cena não está boa. Vamos repetir.
A moreninha que ia entregar a flor ao galã, visivelmente cansada, reclamou: ‘Dê-me então, outra flor, pois esta já murchou…’
Jovita gritou alguma coisa, que não compreendi, e os refletores voltaram a brilhar. ‘Ação!’ — fêz ela, com energia masculina. E a câmara rodou. Quando a cena terminou e os artistas, fatigados e suarentos, retiraram-se, fomos à cata da história da única companhia cinematográfica do mundo dirigida só por mulheres.”
(LUCCA, Domingos De, 1952, p. 4)
Essa é a abertura da reportagem intitulada Mulheres descobrem a 7° arte, da Revista da Semana. O sugestivo subtítulo afirma: “Sem homem, não há romance” e, como era de se esperar, o restante do texto está carregado de comentários misóginos que dizem mais do imaginário da época e do autor do que do trabalho das cineastas em si.
Então deixemos por ora a misoginia aberta sob o pano da década (para retomá-la, mais tarde, naturalmente) e examinemos uma questão mais sutil: o título Mulheres descobrem a 7° arte sugere que essa arte nos era até então desconhecida. Ideias semelhantes aparecem também em outras matérias. O Fluminense (RJ) fala na “primeira película brasileira a ser dirigida por uma mulher.” (A.N. 1952, p. 1); já o Jornal de Notícias (SP) vai mais além: “Tânia Simões, a primeira cinegrafista do mundo, é uma das diretoras da Companhia Cinematográfica ‘Terra do Brasil’.” (JORNAL DE NOTÍCIAS, 1951, p. 12).
Sabemos bem que, mais de 20 anos antes, Cleo de Verberena dirigia O mistério do dominó preto e que, ainda antes de Tânia, outras mulheres dirigiram filmes no Brasil. Já sobre ser a primeira cinegrafista do mundo, parece ser puro sensacionalismo, já que é difícil crer que o autor da reportagem realmente acreditasse que em quase 60 anos de cinema nenhuma mulher houvesse desempenhado essa função.
E a questão que fica é: os leitores compraram a ideia? Não temos dados para afirmar que sim ou que não, mas é bem possível que tenham comprado. Talvez os mais atentos se lembrassem do sucesso de O Ébrio, dirigido por Gilda de Abreu apenas seis anos antes, mas dificilmente alguém recordaria Cleo de Verberena. A história das mulheres no cinema brasileiro vem sendo desenterrada aos poucos, sendo a primeira pesquisa conhecida a esse respeito datada de 1982.
É nítido que por mais barulho e sensacionalismo que os jornais façam a respeito de produções femininas, a nossas produções no cinema são logo esquecidas, sempre apagadas em pouco tempo. Se hoje um filme é realizado apenas (ou majoritariamente) por mulheres, a iniciativa é tratada como inovadora, sem que sejam analisadas ou mesmo evocadas as tentativas anteriores, bem sucedidas ou não.
Sobre a misoginia da época, trazemos um trecho do jornal O Malho (RJ), que nos mostra como era possível escrever de maneira respeitosa sobre o trabalho de duas mulheres, mesmo em 1952:
“É um filme luxuoso que se passa nesta capital, Rio de Janeiro e em uma fazenda. (…) A direção geral está a cargo de Tânia Simões, que também é cineasta, e também o cérebro pensante de tôda a Companhia, é a unica no mundo que ao mesmo tempo exerce as funções de Diretora Geral Decupagem Revelação, Roteiros etc., etc. Faz também toda a filmagem. Uma das finalidades da empresa é a criação de uma Escola de Aperfeiçoamento, tendo em complemento tudo quanto diga respeito à arte cinematográfica e sua técnica geral. Será essa escola inteiramente gratuíta oferecendo assim oportunidade a todos que desejarem ingressar no Cinema, Teatro, Rádio, etc.”
(O MALHO, 1952, p. 27)
O empreendimento da Terra do Brasil não deu certo: o filme nunca foi lançado e nem mesmo finalizado. Nos jornais da época, que tanto apontavam a ousadia do excepcional projeto, nada se lê a respeito. Nos resta apenas imaginar os motivos do fim da companhia. Tânia e Jovita criaram então uma companhia de teatro, que não tardou a ruir também, sob diversas acusações de golpes e crimes (cometidos pelas duas) que não são detalhados pela imprensa.
As buscas por informações sobre a companhia se tornou surpreendente. No decorrer do processo, a quantidade de pseudônimos e nomes artísticos que as cineastas utilizaram levaram a uma pesquisa mais aprofundada e a descoberta foi sem sombra de dúvidas peculiar: o nome de ambas não está registrado apenas em recortes de jornais, mas em um processo no ano de 1963 no Diário Oficial do Estado de São Paulo acusadas de golpes e condenadas com o seguinte comentário: “Em Dirza Simões Diniz e Jovita de Almeida Drager ambas são primárias, mas os autos dão notícia de que gozam de péssima reputação assim, considerando as circunstâncias em que se deu o crime e a personalidade das rés.”
Outro mistério a respeito da companhia e do filme são as informações no site da Cinemateca Brasileira. A diretora e o ano conferem com o que se escrevia nos jornais da época. O fato de que o filme não foi finalizado também é informado. O que causa estranhamento são os nomes masculinos em cargos como direção de fotografia e montagem e a ausência de qualquer menção ao nome Jovita de Almeida.
As lacunas na história ainda são muitas e, pelo menos a nós, estimulam a curiosidade. A vontade de contar essa história. É fato que de quando em quando os jornais fazem barulho por um ou outro filme de equipe feminina. Mas em pouco tempo, isso parece ser esquecido, enquanto a grande leva de filmes quase inteiramente masculinos em equipe e protagonismo permanece inquestionada.
As alunas são graduandas do 7°período de Cinema e Audiovisual pela PUC Minas.