Colab
Bromélia-peluda tem folhas peludas verdes e flor lilás com partes roxas
Bromélia-peluda foi descoberta conjunta de cientistas e do cientista cidadão Júlio César Ribeiro | Créditos: Júlio César Ribeiro

O que é ciência cidadã?

Abordagem transdisciplinar incentiva a participação da população em pesquisas científicas e auxilia comunidades

Júlio César Ribeiro estava em uma cachoeira pouco explorada da sua região, em Alvarenga, no interior de Minas Gerais, quando viu uma flor colorida com folhas peludas que não conhecia. Com a ajuda de um galho de árvore seca, ele escalou até o local em que a planta estava, tirou fotos e levou uma amostra para casa. No mesmo dia, o agricultor mandou os registros da flor misteriosa para os pesquisadores do Instituto Nacional da Mata Atlântica (INMA). Segundo o jovem de 22 anos, a flor dividiu opiniões: “eu falei, ‘eu acho que é uma bromélia”, e teve um [pesquisador] que falou que é uma barbacena, o outro falou que não tem nada a ver com nenhum dos dois, e foi uma loucura”. A bromélia-peluda (Krenakanthus ribeiranus) teve sua descoberta divulgada em outubro de 2023 na revista científica Phytotaxa e é resultado da contribuição entre pesquisadores de diversas instituições e o cientista cidadão Júlio.

Júlio César Ribeiro, homem jovem de 22 anos, veste blusa preta, bermuda azul  e tênis branco. Ele está agachado ao lado de exemplares da bromélia-peluda, planta de folhas peludas e flor lilás com roxo
Júlio César com a bromélia-peluda | Créditos: Paulo Gonella

O que é ciência cidadã

Blandina Felipe Viana, professora do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membro do Comitê de Gestão da Rede Brasileira de Ciência Cidadã (RBCC), define ciência cidadã como “uma abordagem transdisciplinar que envolve a participação ativa de cidadãos não acadêmicos na prática científica, permitindo que a ciência seja realizada de forma mais colaborativa e inclusiva”.

Qualquer pessoa pode se tornar um cientista cidadão e ter papéis variados em pesquisas, como elaboração de hipóteses de investigação, coleta de amostras e dados, análise de resultados e divulgação de artigos, conta Viana. Ela considera essa participação fundamental para ampliar a base de dados de um estudo e envolver a comunidade local, principalmente em problemas socioambientais.

O coletivo Rede Brasileira de Ciência Cidadã é um dos espaços que busca incentivar e ampliar a prática da ciência cidadã no Brasil. O grupo reúne cientistas, entusiastas e cientistas cidadãos, e incentiva a prática por meio da articulação entre projetos e divulgação de treinamentos, workshops e oportunidades de conexão entre cientistas e cientistas cidadãos. Entretanto, alguns desafios são intrínsecos à prática, como o equilíbrio entre rigor científico e relevância social: “A continuidade e sucesso dos projetos dependem da qualidade dos dados coletados, da manutenção da motivação dos participantes, de recursos continuados para divulgação dos projetos e capacitação dos participantes. São também desafios para a ciência cidadã assegurar a ética na pesquisa científica preservando valores e conhecimentos locais, bem como, lidar com a análise de grandes volumes de informações”, afirma a professora Blandina Viana.

Ciência cidadã em prol das comunidades

O grupo de pesquisa “Que lama é essa?” surgiu a partir da demanda da sociedade civil organizada após as chuvas intensas de dezembro e janeiro de 2022 em grande parte do estado de Minas Gerais que arrastaram lama de mineradoras para dentro das cidades.

As pessoas começaram a demandar uma resposta sobre o que estava acontecendo com aquela lama que era diferente, tinha cheiro, tinha odor, era viscosa, tinha elementos ali de minerais que eram luminescentes, sabe? E aí eles perguntavam: “a gente quer saber se essa lama é lama do rejeito de minério das mineradoras, se elas estão soltando porque está chovendo, se é do fundo do rio”

Lussandra Gianasi, professora da Geografia da UFMG e coordenadora do grupo de pesquisa EduMiTe
Professora Lussandra Gianasi, mulher por volta dos 50 anos, está ao centro com blusa de manga marrom e calça cinza. Ao seu redor, estão oito estudantes jovens de geografia da UFMG
Trabalho de campo em Congonhas (MG) com os estudantes da disciplina de Geografia Humana do Brasil, da UFMG. Ao centro, a professora Lussandra Gianasi dá aula prática | Créditos: Arquivo Pessoal/ Lussandra Gianasi

Lussandra Gianasi, professora da Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do grupo de pesquisa EduMiTe (Grupo de Pesquisa em Educação, Mineração e Território), criou junto à professora Daniela Campolina o grupo “Que lama é essa?”. A partir da coleta de 84 amostras de lama enviadas por moradores de cidades mineradoras em Minas Gerais, os pesquisadores analisam o material e divulgam os resultados. Devido ao fato de as respostas serem muitas vezes técnicas, os estudiosos tentam criar materiais didáticos para que os cientistas cidadãos consigam se apropriar dos dados e se informem sobre temas que costumam ser distantes da população. É o caso do desconhecimento geográfico, conta Gianasi: “Apesar da gente saber que um rio tem uma nascente que está geralmente no alto encaminha para um nível de base menor, as pessoas não têm noção se uma barragem cair, se vai passar do lado da casa delas ou não”.

Sandoval de Souza Pinto Filho, técnico de mecânica, líder comunitário e bacharel em Direito, é um dos cientistas cidadãos que contribuem com o “Que lama é essa?”. Ele iniciou sua atuação como líder comunitário de Congonhas, em Minas Gerais, no Conselho Municipal de Meio Ambiente, em 2007, depois, foi diretor de meio ambiente da União de Associações Comunitárias de Congonhas (Unacom), e, recentemente, foi cofundador do Instituto Histórico Geográfico da cidade. Sandoval Filho atua diretamente com problemas da população, como poluição do ar, segurança hídrica, segurança de barragens, empregos e rodovias, e atua na interface com imprensa, academia e Ministério Público.

Sandoval é um homem branco por volta dos 60 anos vestindo uma blusa corta-vento preta, chapéu branco e com uma câmera profissional dependurada no pescoço. Ao fundo, um trem transportando minério
Sandoval Filho atua como cientista cidadão desde 2007 | Créditos: Arquivo Pessoal/ Sandoval Filho

Sua primeira participação em pesquisas foi em 2007, quando o Gesta, Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da UFMG, estudou a realocação forçada de moradores em uma área próxima à de exploração mineral. Atualmente, ele colabora com o grupo “Que lama é essa?” com a coleta de materiais cuja análise ele considera provas importantes para processos judiciais. Em outubro de 2023, o “Ministério Público Federal entrou com ação pleiteando uma indenização por danos morais e danos ambientais, em razão do extravasamento de material em uma barragem de Congonhas”, conta Sandoval Filho. “A gente sugeriu que os procuradores procurassem o “Que lama é essa?”, porque com as provas científicas, obtidas com essas análises, fortalece o pleito. A gente tem se valido muito também dessa parceria com as universidades para comprovar, cientificamente, que o que a gente fala enquanto leigo é verdade”.

Em primeiro plano, mulher negra com blusa regata de listras brancas e vermelhas está de costas, segurando uma menina de cerca de três anos de idade. As duas estão em uma casa sem acabamento com vista para outras casas, árvores e uma barragem da mineradora CSN
Barragem que vazou rejeitos pode ser vista da casa dos moradores | Créditos: Sandoval Filho

Sandoval Filho enxerga a ciência cidadã como um tipo de troca.

É uma troca, então quando a gente fala ciência, conhecimento, entendimento, serve para todas as áreas, agora o uso cidadão disso, na minha visão, é para o bem comum, para o bem da comunidade, para a melhoria do mundo.

Sandoval de Souza Pinto Filho, líder comunitário em Congonhas

Lorena Araújo Marcelino

Adicionar comentário