Colab
Ao fundo, parede de tijolos brancos. Em primeiro plano, uma estátua de metal, réplica do "Pensador" de Rodin
Imagem meramente ilustrativa / Créditos: Tingey Injury Law Firm via Unsplash

Paulo Andrade Vitória: “Precisamos separar ciências de pseudociências”

Professor da PUC Minas e filósofo fala sobre a pandemia em entrevista ao Colab, e aborda a relação da ciência com o negacionismo

Professor Paulo Andrade Vitória, da PUC Minas. Créditos: Arquivo pessoal.

Quem nunca “filosofou” uma única frase, pelo menos uma vez na vida? O que é a vida? De onde viemos?

Aposto que essas são perguntas que qualquer pessoa gostaria de endereçar a um filósofo, como eu fiz em minha conversa com o professor Vitória. Mas, como seu tempo era curto (e tempo é outro tema que rende boas conversas filosóficas!), direcionamos a conversa não para a filosofia da vida, mas para as ciências, as pesquisas, as ciências de mentirinha e, claro, os negacionismos, com foco especial na pandemia de covid-19 que segue causando prejuízos e alterando os rumos das ciências mundo afora. 

Para entender melhor o momento atual do Brasil e do mundo em relação à pandemia, e suas importantes disputas de narrativas, ouvimos as falas reflexivas e críticas de Paulo Andrade Vitória, Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Filosofia na PUC Minas, com conhecimentos concentrados na área de Lógica e Filosofia das Ciências. Ele também é professor de Metodologia da Pesquisa Científica e Filosofia da Linguagem do Instituto São Tomás de Aquino.

Confira a entrevista:

Professor, vou me aventurar, se acho que posso dizer assim, numa conversa com você sobre assuntos profundos e complicados. Se alguma fala não tiver sentido, esteja à vontade para corrigir. Então, parece que estamos aprendendo a lidar com uma nova realidade e a conviver com o vírus por aí. Mas e os próximos momentos de quem sabe já um “pós-pandemia”? Teremos harmonia entre conhecimentos científicos ou viveremos um embate entre narrativas em busca de holofotes?

Bem, primeiro que “filosofar por aí” como você diz, é uma coisa muito, mas muito legal, pois quer dizer que fulano ou fulana caminhou mais um pouquinho sobre determinado assunto e “esquentou a cuca”, como se diz, e pensar é a coisa mais gratificante que podemos fazer por nós mesmos.

Já sobre a sua pergunta, a pandemia, se ainda não está no fim, caminha para um quadro de estabilidade e domínio pelo homem, graças ao conhecimento produzido e somado ao longo dos últimos três anos por ótimos pesquisadores de inúmeras áreas. Eu disse conhecimento somado, mas, embora não seja uma coisa desejada por ninguém, poderemos sim, ter uma guerra de narrativas entre representantes de diferentes ciências e a história mostra isso.

Se há bem pouco tempo não sabíamos nada sobre a Covid-19, vimos que ciência é boa, forte e capaz, senão de tudo, de muita coisa é, e certamente teremos controle da grave situação sanitária que ainda assombra o mundo. O problema é que vivemos um tempo chamado pós-verdade, em que pessoas de todos os níveis e de todas as classes saem por aí pregando suas opiniões nascidas do nada, sem nenhuma base. E lutam contra o que é fato, é conhecido e é provado… Uma coisa horrível desses tempos é o negacionismo, que faz parte desta pós-verdade.

E vivemos, não é de hoje, um encontro de comportamentos opostos, pois quanto mais a ciência busca e conquista, mais ela realça grupos muitas das vezes radicais dos dois lados. Numa banda ficam os cientificistas, que adoram as ciências de maneira inquestionável – e olhe que pesquisadores duvidam e questionam o tempo todo. Na outra banda ficam os negacionistas que são uma coisa horrível, pois eles vêm, conhecem, experimentam uma coisa e saem falando outra bem o oposto, que nasceu do nada, e contam estórias sem nenhum cabimento.

Mesmo diante de negacionismos e da vida desorganizada que levamos, a Filosofia reencontrou espaço, inclusive na mídia, com nomes como Clóvis de Barros, Mario Sérgio Cortella, Djamila Ribeiro, Marcia Tiburi, etc. Como e por que isso se deu?

Há os filósofos acadêmicos, ou seja, aqueles que estão nas escolas, cujos conhecimentos são repensados e questionados como saber e repassados adiante como ensino formal. Há outros filósofos, muitos deles permanentemente na mídia, com conhecimento, ótimas presenças e capacidades de falas, e que trabalham o valor do pensamento junto ao público em geral, incentivando a crítica e sugerindo boas formas de lidar com a vida e as coisas dela. Nomes como os que você citou ajudam a desmistificar a Filosofia como conhecimento sem fim ou razão, casca dura, de falas difíceis e tal, e amenizam estereótipos antes dados aos estudantes da área como “viajandões”, desleixados e comunistas de carteirinha.

Principalmente em tempos de pandemia com previsões assustadoras, a vida é mesmo nosso bem mais valioso. O que pensa o professor Paulo a respeito disso, uma vez que há nomes importantes na história, como Nietzsche e Schopenhauer, que não acham a vida uma coisa nada maravilhosa?

A vida vale muito à pena e é possível viver com alegria e harmonia com as pessoas. Isso faz muito bem, claro, mas haverá sempre obstáculos, percalços e coisas ruins também para superarmos. Para a Filosofia Estoica, qualquer tempo e lugar será tempo e lugar para buscarmos uma vida feliz e para isso temos que evitar as perturbações que nos cercam.  Se estou com os sapatos brilhando e por onde estou passando tem um lamaçal, tenho que me desviar se não quiser estar sujo na festa, pois estar imundo no salão seria perturbador para mim.

 Presenciaremos perturbações grandes também como pandemias, maus governos e guerras, e contra elas devemos nos proteger e proteger as pessoas. Dores, medos e aflições vão sempre nos rodear e nos fazer sofrer, conforme disse o filósofo alemão Schopenhauer lá no século XIX.  Nestes momentos, ainda que angustiados, devemos tentar fazer prevalecer a razão e o equilíbrio, pois se nessas condições críticas a atitude não for de valorizar a vida, de fato, a situação perde o controle e vira um caos.

Por exemplo, se as autoridades de saúde não detectassem a tempo os riscos da violenta pandemia, não determinassem que as pessoas ficassem em casa, e se as pessoas não tivessem entendido o recado, teríamos um caos que não dá para dimensionar, de tão grande e violento que seria. E tomar as medidas de proteção na pandemia é um mega exemplo de se evitar perturbações.

Neste momento faz ainda mais sentido reconhecer e valorizar as ciências por tudo que elas fizeram e propuseram conjuntamente, ainda que uma ou outra por algum motivo se destaque. O senhor acha que há supervalorização desta ou daquela ciência e pouco caso com as outras?

O período da pandemia trouxe contradições. Em uma delas, enquanto um mundo de gente precisou se recolher para não proliferar o vírus, um outro grupo ficou ainda mais tempo fora de casa. Numa corrida contra o tempo e a favor da vida, cientistas de determinada área tentavam entender sobre o vírus enquanto os de outros ramos ensaiavam a criação de medicamento e vacinas que o contivesse. Ao mesmo tempo, outros grupos observavam pacientes e os tratavam como podiam em busca de melhoras dos sintomas da doença Covid-19. Um último grupo monitorava pessoas e comportamentos para dominar um quadro alarmante: até redes de esgotos serviram para verificação da presença e da multiplicação comunitária do vírus. Então, cada área deu sua parcela de contribuição.

Vimos que estavam trabalhando com afinco e esperançosos por resultados promissores de qualquer parte do globo, especialistas de áreas como Biologia, Biomedicina, Enfermagem, Farmácia, Imunologia, Medicina, Química, Sociologia, Virologia etc.  

Se nestes últimos tempos as pesquisas avançaram nessas ciências, e avançaram imensamente, noutras áreas praticamente paralisaram, justamente em função do necessário afastamento social que a pandemia exigia. Vimos um Brasil contraditório, a ponto de ser um dos primeiros países a criar uma vacina contra o vírus através do Instituto Butantã, em São Paulo, e, paralelamente, ver escândalos envolvendo aquisições fraudulentas de vacinas e a instituição da lenda de que uma doença nova e severa como a Covid-19 poderia ser tratada com medicamentos sem qualquer resultado positivo ou validado. Contrastes no confronto de um Brasil pensante, pesquisador, técnico, protocolar e brilhante, com um Brasil de falsas pesquisas, de engodo, de negacionismo e de oportunismos.

No caso da Medicina, ela tem recebido lugar maior de destaque na mídia e entre as pessoas, ainda que os bons resultados alcançados na pandemia não se devam somente ela, mas isso não parece ser um fenômeno novo. Por que e como essa admiração se dá?

Historicamente, a sociedade sente necessidade de se agarrar a extremos diferentes do que o conhecimento crítico propõe, como é o cientificismo.  Se, no passado, a Física se manteve no tempo como modelo de ciência, depois a Biologia e a Química também tiveram absurdos destaques, há tempos registra-se a supervalorização da Medicina. Como exemplo de que este grande destaque não é de agora, basta olhar para o Brasil do tempo da chegada dos portugueses, que fundaram as escolas de Direito e de Medicina, e quem era diplomado já saía como doutores, como ainda assim são chamados. Ressaltando que os avanços da Medicina e os ganhos de todos com o desenvolvimento desta ciência colocam-na como algo superior a tudo, e não deveria ser assim, porque os conhecimentos da Medicina vêm do que trouxeram outras ciências como Biologia e Química, por exemplo.

A Pandemia do novo coronavírus seria capaz de colocar de forma clara que não há hierarquia entre os saberes e que a troca de informações com ajuda mútua é a melhor forma de fazer ciência?

Vivemos um tempo rico em sabedoria e incessante busca por mais e mais, vendo enfermeiros, fisioterapeutas e médicos tratando doentes de Covid-19, cada qual com suas habilidades e conhecimentos. E desde os momentos mais assustadores da pandemia eles contam com inestimáveis ajudas da Física e da Engenharia, no caso do uso de respiradores artificiais; da Química, produzindo sabão, álcool e testes de verificação; da Imunologia, que buscava por vacinas; da Biologia, que mapeou a estrutura genética do vírus; e de Farmácia, que avaliava medicamentos para amenizar os sintomas da doença e confirmava que outras drogas anunciadas para cura eram enganações.

A imprensa e a população entenderam os problemas conforme a TV e a Internet trouxeram, tudo de forma clara e simplificada, valendo-se da ajuda da Matemática e da Estatística, pois tudo é representado por gráficos explicativos. E como seria possível pesquisadores de lugares opostos do planeta trocarem informações e saberem das coisas sem veículos de comunicação sérios e imprensa especializada, como a revista Science, por exemplo?

Havendo o controle da pandemia, poderíamos em determinado momento assistir guerras de narrativas em que uma ciência se afirme ser “a” ciência que e as demais são apenas auxiliares?

É possível. As guerras de narrativas são comumente vistas e são tratadas pelos Filósofos Pós-modernos como pretensa superioridade em busca de protagonismos. E daí surgem corporativismos, protecionismos e outras manifestações que não ajudam em nada, em embates vazios de conteúdos e proposições, com as partes querendo ganhar no grito.

As narrativas são também ruins ao não considerarem os fatos, e criam um ambiente fértil para o que chamamos de pseudociência, ou seja, a ciência que não é ciência e que atrapalha as ciências. E então temos a conclusão de que é preciso estar claro o que realmente é ciência e o que é pseudociência e afastar bem, umas das outras, uma vez que as pseudociências nada discutem e nada produzem, mas recebem recursos que são destinados às pesquisas, que são coisas de ciências sérias.

Muitos médicos são cientistas, mas médico não é um cientista se ele não faz ciência… ele é médico! Agora, se ele receita medicamentos sem nenhuma eficácia para tratar a Covid-19, atesta que está tratando corretamente e que o tratamento está correto, esse médico pratica a pseudociência, pois se baseia no que ele acha e quer e ignora protocolos e pesquisas sérias.

Se as guerras de narrativas geram ambiente ideal para o surgimento das pseudociências, essas, por sua vez, dão vozes à ignorância, à teimosia, à desinformação, às oposições ao que é correto e sério, ao espalhamento de inverdades e o ódio, uma vez que cada um cria sua própria ciência e suas verdades em suas narrativas.

Assista também o debate sobre “Ciência e Pós-verdade” com os professores Paulo Andrade Vitória e Fernando Mariano Placides:

Leia outras entrevistas publicadas no Colab aqui.

Wilson Carlos da Silva

Adicionar comentário