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Bandeira LGBTQIA+ ao fundo, com uma mão segurando um coração
Imagem meramente ilustrativa via Unsplash

Mulheres que amam mulheres e seu legado na MPB

Para a comunidade LGBTQIA+, a inserção de mulheres que amam mulheres nos estilos musicais nacionais é uma questão de representatividade.

A ascensão de mulheres LGBTQIA+ na MPB teve início com artistas interpretando músicas originalmente cantadas por homens sobre amar uma mulher. Sem trocar o gênero e até mesmo “ousando” usar o eu lírico no feminino, mulheres que amam mulheres sempre estiveram nesse meio mas, a princípio, ganhando reconhecimento apenas como intérpretes. Isso, pelo menos, até a década de 1970.

Quem explica é Amanda Pedrosa, que trabalhou por dois anos em pesquisas sobre música brasileira na rádio, na Universidade de São Paulo (USP). Ela conta que o pesquisador Renato Gonçalves, no livro Nós Duas’, chama atenção, por exemplo, para a canção Girl, da cantora Tuca, em que o eu lírico feminino faz um convite a outra mulher. Esse é um exemplo do começo da liberdade de expressão homoafetiva na música popular brasileira.

Com o passar das décadas, as referências foram se tornando menos sutis, como nas composições da artista Ana Carolina. Na música Rosas, há uma série de sugestões sobre a relação entre duas mulheres. Em suas apresentações ao vivo, a cantora costuma, com sensualidade e simpatia, sugerir o tema enquanto ‘conversa’ com a plateia, “quase como se dissesse que o público ‘sabe do que ela está falando’”, explica Amanda.

Mestranda em Meios e Processos Audiovisuais, Amanda estuda a trajetória de uma gravadora de música instrumental chamada Núcleo Contemporâneo, na Escola de Comunicação e Artes da USP. Mas sobre as sugestões de romance na música popular interpretada por mulheres que amam mulheres, ela pontua que é importante entender que essas ‘sutilezas’ nas composições foram (e ainda são) ignoradas pelo público mais conservador.

“Esse público procura desvincular a sexualidade da artista das canções apresentadas”, comenta a pesquisadora. Assim, popularizam-se músicas com pronome ambíguo e referências e linguagem que não são explicitamente homoafetivas, ficando esses sentidos desconhecidos do grande público.

Vida privada versus performance pública

A cantora Cássia Eller. Foto: Reprodução / Wikipedia

A cantora, multi-instrumentista e compositora Cássia Eller foi bastante reconhecida por todo o Brasil por interpretar com maestria e influenciar todo o gênero de rock (além do MPB) em território nacional. No entanto, nas canções, não dava ênfase a sua sexualidade.

Amanda Pedrosa comenta que, por mais que Cássia Eller compartilhasse bastante de sua vida pessoal de forma pública, e não performasse feminilidade, com seus cabelos curtos e vestimenta despojada (associados ao estereótipo de gênero masculino), a cantora era muito mais reconhecida pelos gêneros musicais pelos quais transitava.

“Ainda que a imagem de Cássia Eller causasse estranhamento ao conservador dos anos 90, sua música era apreciada pela mistura de elementos, desde o punk rock, passando pelo samba até a MPB”.

Amanda Pedrosa

Amanda reconhece a relevância de manifestações artísticas de importantes nomes da música popular brasileira, em meados das décadas de 60 e 70, explicando que “embora não estivessem vinculadas fortemente a movimentos sociais no período, Angela Ro Ro, Marina Lima e Tuca, estavam, sim, quebrando padrões que tiveram consequências artísticas e políticas a curto e longo prazo”.

A pesquisadora associa a relevância das artistas para a representatividade LGBTQIA+ através dos tempos, mesmo que não houvesse uma declaração política ativa referente ao assunto.

Música e subjetividade de mulheres que amam mulheres

“As músicas, quando escritas ou interpretadas de forma orgânica, sempre vão ter algo da personalidade, da vivência daquela pessoa”, comenta Bartira Sene, cantora, compositora e instrumentista, graduanda em Música pela Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto.

Ela acredita que por mais que uma parcela do público tente desvincular a sexualidade da artista da composição, a música contém resquícios da experiência pessoal, tornando impossível uma apresentação genuína ser plenamente aberta a interpretações.

Ana Carolina, já citada nesta reportagem, tem músicas ambíguas extremamente populares, como Quem de Nós Dois, mas também músicas com conotação sexual óbvia, como Eu Comi a Madona, em que descreve uma relação sexual lésbica. Porém, a música faz mais sucesso entre os fãs da artista que fazem parte da comunidade LGBTQIA+, conforme ressalta a estudante de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Isabela Velocini, mulher cis lésbica que é amante do gênero popular brasileiro.

“O Brasil só quer ouvir uma mulher falando que comeu outra mulher para sexualizar, não para legitimar”, opina Isabela. Ela acredita que é importante ver artistas influentes nas mídias sociais tratando dessas questões, para gerar espaço na luta da mulher homossexual e não somente representatividade no meio.

Raça e invisibilidade

“Homens (muitas vezes, negros) compunham, e mulheres (muitas vezes, brancas) cantavam”, ressalta Amanda Pedrosa sobre como a indústria musical enfatizava a desvalorização de minorias. “Hoje, as mulheres estão em peso em todos os nichos da música brasileira, embora nem todas tenham a mesma visibilidade midiática”, acrescenta a pesquisadora.

Ainda hoje, mulheres negras e fora do padrão estético socialmente estabelecido continuam sendo invisibilizadas na música, Isabela Velocini lembra de Ellen Oléria, mulher negra, gorda e lésbica, como ela mesma se apresenta. Por mais longa que seja sua carreira de mais de duas décadas como cantora e compositora, além de ter ganhado o reality show da TV Globo The Voice (2012), não fez tanto sucesso quanto artistas brancas.

“Mesmo com todo mundo falando que ela canta muito bem, ela não estourou”, comenta Isabela ao expor que mesmo com mulheres LGBTQIA+ fazendo grande sucesso na geração mais recente da MPB como, por exemplo, Duda Beat, Ana Vilela ou até mesmo a influente Maria Gadú, artistas negras e fora do padrão costumam ser deixadas de fora.

Para a comunidade LGBTQIA+, a inserção de mulheres que amam mulheres nos estilos musicais nacionais é uma questão de representatividade. Para o feminismo, uma conquista de espaço, conforme aponta Isabela, exemplificando a popularização de cantoras em barzinhos como foi o caso do início da carreira de Maria Gadú que se apresentava em bares na noite de São Paulo antes da fama – prática considerada atípica e até perigosa para mulheres, mas que está se tornando cada vez mais popular.

O despreparo político e social, segundo Isabela, é fator que ainda atrapalha a situação de artistas LGBTQIA+, não somente na música popular brasileira, mas em todas as plataformas midiáticas nacionais. “Por mais que hoje em dia um espaço dentro do gênero musical tenha sido conquistado, ainda há muitas barreiras referentes a preconceitos e homofobia que estão sendo derrubadas aos poucos”, lamenta.

Amanda Pedrosa acredita que um caminho esta sendo traçado pela luta feminista e LGBTQIA+. Apesar da crescente onda de conservadorismo que também atinge o público, há também uma parcela da sociedade bastante interessada no que as mulheres que amam mulheres têm a dizer. “Acredito que mulheres LGBTQIA+ tenham, hoje, mais espaço para cantar sobre diversas temáticas”, ela acrescenta, exaltando as vitórias do movimento. “É importante dar atenção aos movimentos que repercutem, principalmente nas mídias sociais”, conclui.


Confira nossa playlist ‘Mulheres que amam mulheres (MPB)’!

Marianna Ferry

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