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imagem de um mural em um predio ccom uma mulher negra em destaque e verde azul e vermelho ao fundo
Acervo CURA

Até onde a sua opinião é considerada liberdade de expressão?

Como já dizia o ditado popular, “o seu direito acaba onde começa o do outro”. E ele vale para variadas situações, especialmente em um cenário em que a liberdade de expressão e a censura voltaram a ocupar a tônica do debate público. O cerceamento à arte urbana voltou a ser debatido em Belo Horizonte após a prisão do grafiteiro Poter, em agosto, durante uma operação da Polícia Civil. Segundo a polícia, um dos objetivos da ação era acabar com os “Melhores de Belô”, grupo de pichadores da cidade. Mas o que revoltou setores que se posicionaram contra a ação policial foi que a investigação surgiu com a realização da obra “Deus é mãe”, que ilustra uma mãe negra com seus dois filhos. 

Em uma publicação na rede social do Instagram do Circuito Urbano da Arte (Cura), as organizadoras dizem: “Nós, organizadoras do CURA, e mais cinco artistas convidados da edição 2020, fomos incluídas criminalmente em inquérito da Polícia Civil que investiga a ocorrência de crime contra o meio ambiente. O motivo é a presença da estética do pixo em uma das empenas da coleção do festival CURA.” 

No post, as representantes do Cura defendem que esse processo é uma investigação ilegal, de cunho racista, com o intuito de criminalizar artistas da periferia e a arte urbana. Janaína Macruz, uma das idealizadoras do Cura, diz que isso se deve a uma luta da classe social, “não é coincidência essa censura porque tem muito a ver com um discurso de ódio de classes sociais. Eles vão censurar e falar que não é arte o que vem da periferia”, afirma Janaína.

Já a Polícia Civil, em nota, informa que há investigação em curso de pichações praticadas anteriormente à pintura do CURA, em um edifício de Belo Horizonte. Assim, conclui-se que o inquérito não é contra o Circuito Urbano da Arte e sim, a pichadores da região.  

Não é a primeira vez que movimentos artísticos são perseguidos no país e em BH. Durante os períodos autoritários a prática era recorrente e sistemática. Mas até mesmo na experiência da democracia, há casos emblemáticos. Em 2018, a artista mineira Criola também sofreu com sua obra do Circuito Urbano de Arte, Híbrida Astral – Guardiã Brasileira, que retrata personagens multidimensionais de um mundo simbólico. Na ocasião, um dos moradores do Condomínio Chiquito Lopes, região Central, onde a obra foi grafitada, entrou na justiça para a retirada da pintura alegando que era de “gosto duvidoso”. 

De acordo com o Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade Artística (Mobile), até julho deste ano foram registrados 36 casos de censura. As tentativas de repressão a movimentos artísticos se configuram como uma das diversas formas de se manifestar a censura. Em julho deste ano, foi aprovado na Câmara Municipal dos Vereadores de BH o Projeto de Lei (PL) do vereador Henrique Braga (PSDB) para instituir a Política Municipal de Promoção a Arte Urbana e do Grafite e de Combate a Pichação no Espaço Público Urbano. O objetivo principal era aumentar para R$20 mil a multa para os pichadores reincidentes e promover um cadastro dos locais públicos para grafite.

Na última semana, o prefeito Alexandre Kalil vetou o projeto e afirmou que este se opunha ao interesse público. Apesar do PL voltar à Câmara Municipal, a decisão foi muito comemorada nas redes sociais, uma vez que houve um grande movimento de intelectuais e artistas urbanos contra o PL.

Mapeamento da censura no Brasil

Os painéis culturais em BH se tornaram alvo de muitas críticas e, para Janaína Macruz, do Cura, isso se deve a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Vivemos atualmente em um governo facista, que traz um direcionamento de necropolítica. Então, eles atacam justamente o setor que é contra os seus princípios e, por isso, os casos de ataque estão aumentando. Eles querem trazerem uma monocultura.”, diz a idealizadora.

Maiara Orlandini, que é mestre em comunicação social e participa de pesquisa sobre censura e liberdade de expressão, explica que as práticas censórias realmente se tornaram mais frequentes a partir de 2019, com a posse do atual Governo federal. “Esses casos passam a ter uma validação de um movimento conservador que agora é liderado por um chefe de Estado”. Ela demonstra isso citando casos de demissões arbitrárias na Agência Nacional de Cinema (Ancine) e de campanhas publicitárias de bancos estatais canceladas devido ao seu teor.

Mas para ela as causas do crescente movimento de censura vão além do panorama político brasileiro. Ela acredita que o fenômeno está ligado à crise global das democracias e à ascensão de líderes conservadores e antidemocráticos. “Há uma criminalização de pautas de minorias, muitos debates que haviam ganhado seu espaço público e agora vem regredindo pela diminuição e despolitização dos temas”, afirma. Ela ainda reforça que no Brasil a censura à arte está ligada a questões morais e culturais principalmente influenciadas pelo crescimento das religiões neopentecostais.

A pesquisa da qual Maiara faz parte realizou um levantamento sobre o tema, no qual analisou 42 casos de censura artística entre junho de 2017 e dezembro de 2020. Ela constatou que a censura pode partir de dois pólos principais: o Estado e a pressão de mobilizações da sociedade civil, em especial movimentos organizados como, por exemplo, o Movimento Brasil Livre (MBL). Outros órgãos cerceadores são as empresas privadas, os próprios espaços e produtores culturais, as polícias e o Judiciário. Ela também cita a autocensura, que ocorre quando o próprio agente propagador escolhe encerrar ou não expor uma ação artística seja qual for o motivo. 

Como exemplo das práticas de patrulhamento à arte e tentativa de cerceamento da liberdade de expressão, Maiara cita o caso da QueermuseuCartografias da Diferença na Arte Brasileira, em Porto Alegre,  exposição que foi Câmara de Vereadores de Porto Alegre, que foi cancelada posteriormente. 

Há também as vistorias que funcionam mais como uma ação intimidatória. A apreensão de material, como aconteceu na Bienal do Livro de 2019 com a HQ Vingadores: A cruzada das crianças, é um exemplo. O então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, determinou a apreensão do livro, que continha um beijo entre dois garotos, mas depois foi impedido de concluir o gesto de censura. Depredações e ações judiciais como as enfrentadas pelas obras do Cura e até prisões também foram identificadas como formas contemporâneas de um novo tipo de censura.

A partir dos dados da pesquisa, Maiara afirma que a ação censória acontece mais frequentemente nas regiões Sul e Sudeste. Os conteúdos que foram mais perseguidos abordam sexualidade, teor religioso e crítica política, principalmente críticas ao governo Bolsonaro e à ditadura. “Há um incômodo muito grande com obras que relembram o passado do país”, enfatiza Maiara.

A equipe da qual a pesquisadora faz parte, que envolve ainda Bruna Silveira e Fernanda Sanglard, professora da PUC, chegou à conclusão que todos os casos analisados provocaram mobilizações favoráveis, que lutaram para combater as ações censórias. As principais formas de resistência identificadas foram os protestos nas ruas, novas exposições feitas com financiamento coletivo e o uso de hashtags nas redes sociais com palavras de ordem contra a ação censória. Ainda foram catalogadas formas de manifestação mais organizadas e estruturadas. Exemplo disso são campanhas como o 342 Artes que reuniu vários artistas com objetivo de combater a criminalização e a censura às manifestações artísticas e culturais por grupos conservadores brasileiros. Além dessas, aparecem em destaque também as ações criativas, como a atitude de Felipe Neto ao comprar e distribuir gratuitamente as HQ censuradas na Bienal.

Para Maiara, quando acontecem processos de censura e perseguição às produções de arte, a intenção é de enfraquecer movimentos de resistência e inibir assuntos polêmicos, como racismo, discriminação de gênero, sexualidade, entre outros. De acordo com a pesquisadora, “a arte incomoda, principalmente alguns aspectos subversivos dentro dela, porque ela tensiona o status quo, nos fazendo refletir. E ação censória é para reprimir essas reflexões”.

Liberdade de expressão vs Discursos de ódio

Nesse contexto, a luta pela liberdade de expressão é incansável. Por isso, é preciso se perguntar, até quando minha opinião é liberdade de expressão? Para Janaína Macruz, do Cura, o limite está nos direitos individuais e coletivos de cada cidadão, que foram conquistados após muita luta. “Você não pode trazer coisas que estão na legislação como liberdade de expressão! Racismo, machismo, lgbtfobia é crime! Você não pode usar isso como sua opinião, porque está atingindo o direito individual do outro”, ressalta. 

Segundo o Artigo 19º da Constituição Federal de 1988, “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões”. Porém, há quem utilize desse direito para disseminar discursos de ódio. Conteúdos antidemocráticos, misóginos, lgbtfóbicos e racistas são compartilhados sem o menor receio, pois seus propagadores usam o conceito de liberdade de expressão como garantia de que não serão punidos. Maiara diz que isso acontece por uma compreensão alargada do conceito.

As doutoras em comunicação social Raquel Recuero e Tatiana Dourado, que participaram do Seminário de Extensão da PUC Minas, destacam o papel das fakes news no processo de massificação dos discursos de ódio. “O discurso político polarizado manipula as pessoas para tornar o outro o inimigo, o que gera vários tipos de violência.  Assim, a desinformação se torna um combustível para toxicidade, discursos de ódio, conspiração e incivilidades”, afirma Raquel. Segundo Tatiana, as fake news se configuram na atualidade como mais uma preocupação para a democracia.

Recentemente, a escalada de discursos antidemocráticos fez o país temer um golpe nas manifestações de 7 de setembro. Apesar do risco, o professor de Direito Marcelo Galuppo argumenta que este é o preço de se viver em uma democracia. “Toda a democracia corre o risco de ter um golpe. Este regime exige que os cidadãos sejam tratados como sujeitos responsáveis e que possam escolher o que é melhor. Mesmo que eu ache que eles estejam equivocados, é um movimento legítimo”, avalia. Ele acredita que impedir esses grupos de se expressar pode ter um efeito mais negativo do que positivo. “Existem muitos estudos que mostram que o processo de silenciar compulsoriamente uma pessoa não produz bons frutos. Deixá-las se expressar é um mecanismo para saber onde o risco está. Se você não sabe de onde vem o perigo, o perigo vem de qualquer lugar. Se elas não podem se expressar, não podemos identificá-las como pessoas perigosas”, explica.

Para Maiara, é preciso combater esses discursos que se valem da liberdade de expressão para cometer incivilidades, mas ela acredita que isso deve ser feito através da conscientização do que de fato é o direito à liberdade de expressão. “Vivemos em um estado democrático de direito, no qual podemos nos expressar, mas respeitando esses ideais democráticos. É fundamental compreender que a liberdade de expressão não abarca discurso de ódio, não abarca intolerâncias”, afirma. 

Disseminação de discurso de ódio

Um dos principais meios pelo qual os discursos de ódio se propagam atualmente são as redes sociais. Maiara explica que isso se deve ao modo de governança dessas plataformas, pois não há, por meio das empresas, uma responsabilização pelos conteúdos disseminados ali. “As plataformas de redes sociais são empresas de tecnologia, elas não têm uma obrigação social com o que circula ali dentro, diferente por exemplo dos veículos de comunicação”, afirma a pesquisadora. Maiara explica ainda que os algoritmos dessas plataformas proporcionam que as pessoas encontrem outras com posicionamento semelhante e forme grupos, o que fortalece sua ação e inflama os discursos de ódio. 

Outro facilitador é a falsa sensação de proteção e impunidade que os usuários dessas plataformas têm. “Com a massificação das redes sociais, esse debate ganha novos contornos. De um lado, as redes podem promover um espaço para debates plurais. Mas esse lado positivo é pouco utilizado se comparado com os usuários anônimos que utilizam as plataformas para disseminar conteúdo de ódio, difamatório e antidemocrático”, afirma Maiara.

Matéria de Malu Rabello e Tainara Diulle

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