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Prédio em Belo Horizonte foi centro de tortura durante a Ditadura Militar

Local foi sede do DOPS e do DOI-CODI, órgãos de repressão aos opositores do regime

Avenida Afonso Pena, 2351. Em uma das principais vias de Belo Horizonte, um prédio de traços arquitetônicos modernistas se destaca na paisagem urbana. Sua história, porém, vai na contramão de qualquer espírito de vanguarda. Durante a Ditadura Militar, esse era o endereço do DOPS, Departamento de Ordem Política e Social, cenário de tortura, prisões arbitrárias e violações dos direitos humanos.

Confira as histórias dos presos políticos que passaram pelo local

Prédio do DOPS, 1970. : APM, Fundo Dops/MG, Rolo 055, Pasta 4163, Imagem 821.

A criação dos DOPS no Brasil é anterior ao golpe de 1964. O órgão existia desde a década de 1920 e era uma espécie de polícia política, um braço forte do Estado para reprimir cidadãos considerados “subversores da ordem”:

Estava fundamentalmente à disposição dos governos quando estes decidissem vigiar e/ou aprisionar certos indivíduos, combater determinados comportamentos e estigmatizar grupos inteiros, tidos sempre como “nocivos” e perigosos para a ordem pública e a segurança nacional”

Dossiê de tombamento do edifício, 2013

Em Minas Gerais, a sede do departamento foi inaugurada em 1958, com projeto do arquiteto Hélio Ferreira Pinto. A construção em um ponto estratégico, na região central da capital mineira, fazia parte de um projeto político do governo estadual, que via a necessidade de equipar a Polícia Civil para combater o que se entendia por “ameaça comunista”. No regulamento do DOPS, destaca-se entre suas competências a “direção dos serviços de prevenção e repressão dos delitos de natureza político-social” (Art. 2, 1956)

Quando os militares tomaram o poder, a atuação se intensificou.

Durante a Ditadura Militar esse prédio funcionou como uma espécie de quartel-general. Não era somente um local onde os presos políticos eram levados, mas também um centro de informação, operacional. É claro que você tinha em Belo Horizonte outros prédios, por exemplo, ligados ao Exército Brasileiro, mas o DOPS era que fazia investigações, perseguia, fichava, prendia, torturava. Tudo isso, e na maioria das vezes, na surdina, sem nenhuma ordem judicial. Sem que, inclusive, as pessoas soubessem por que elas estavam sendo perseguidas”

Robson Sávio, coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais
Agentes do DOPS prendem manifestante no centro de BH. Foto da década de 1970. Créditos: Dossiê de tombamento municipal do prédio

Tortura e vigilância

Em 1970, no governo do general Emílio Médici, foi criado um novo órgão: o DOI-CODI, composto por representantes das três Forças Armadas e das polícias Civil e Militar. Seu objetivo era centralizar e organizar a repressão aos adversários do regime, devido ao aumento da resistência popular. O Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) era responsável por coordenar e planejar as medidas repressivas. Já o Destacamento de Operações de Informações (DOI) era o braço operacional, ou seja, encarregado de colocar as ações em prática.

Em Belo Horizonte, o DOI-CODI começou a atuar em 1971, no 3° andar do prédio do DOPS, na Afonso Pena. Este, por sua vez, continuou atuando de forma independente na investigação, prisão e interrogatório, muitas vezes por meio de sessões de tortura. Ambos organismos faziam parte do Sistema Nacional de Segurança Interna .

Para Sálvio Penna, que foi preso e torturado no local entre 1971 e 72, as violações que aconteciam ali eram omitidas da sociedade civil. “Eu posso quase afirmar que era uma coisa velada. A repressão que o país sofria era muito intensa na ditadura Médici. Foi uma ditadura sangrenta, muita gente foi torturada, desapareceu ou foi assassinada. Não era fácil”. Ele explica que por mais que a imprensa soubesse da existência do DOI-CODI, o que acontecia dentro do prédio era secreto. Além disso, existiam dificuldades para denunciar as violações na época: “Nós não conseguíamos fazer denúncia de tortura dentro do Brasil. Algumas pessoas faziam denúncias no exterior. Às vezes mandávamos cartas através de pessoas como o Dom Paulo Evaristo, que levavam para países da Europa”, conta. 

O prédio do Dops representa a memória que a gente precisa guardar. Eu falo sempre que posso. Infelizmente, poucos sabem o que aconteceu, então eu conto essa história, esses momentos, porque as pessoas precisam saber. Eu acho que ainda existe pouca coisa escrita sobre o golpe e os tempos de Ditadura. Eu não perdi a esperança de que nós vamos lutar e transformar esse lugar em um museu. É importante demais, no centro da cidade, no coração de Belo Horizonte, termos um lugar restaurado, intacto, como ele recebeu as pessoas para serem torturadas. E é isso que eu vejo lá, não consigo passar por ali sem ter essa coisa mexendo no meu coração: nós ainda vamos ter nossa memória depositada aqui”

Sálvio Penna, ex-preso político

Situação atual

A criação de um Memorial dos Direitos Humanos no prédio do DOPS foi aprovada pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais por meio da LEI nº 13.448, de 10/01/2000: “Art. 6º – Fica declarado patrimônio histórico estadual o acervo do Memorial, que se instalará em Belo Horizonte, no prédio ocupado pelo extinto DOPS”

Porém, em função de disputas políticas em torno do prédio, em 2005 houve uma alteração na lei, suprimindo o decreto inicial de que o memorial deveria ser instalado especificamente nesse local:

Parágrafo único. O Memorial de Direitos Humanos tem sede em Belo Horizonte”

(Parágrafo acrescentado pelo art. 1º da Lei nº 15.458, de 12/1/2005.)

A Polícia Civil continuou ocupando o espaço até 2018, com a Delegacia do Narcotráfico (DENARC). Entre a saída da polícia e a entrega para a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (SEDESE-MG), o prédio ficou vazio e sofreu depredações. Nos últimos três anos, todos recursos foram destinados a obras de salvaguarda, visto que o edifício estava muito deteriorado.

De acordo com a SEDESE, ocorreu uma parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais, envolvendo uma equipe interdisciplinar de mais de trinta pesquisadores, especialistas em em Museologia, Arqueologia, História e Direito. Os estudos feitos por eles são para a criação do projeto museológico. A próxima etapa é o projeto executivo, que envolve trâmites burocráticos e legais. Quando esta for aprovada, será possível estipular orçamento e prazos para que o Memorial seja finalmente instalado.

Confira imagens atualizadas do prédio:

Qualquer intervenção na edificação deve ser precedida por estudos, pois ela é tombada nos âmbitos municipal e estadual pelo seu valor imaterial e histórico. A pesquisadora Debora Raiza, mestre em História pela UFMG, escreveu sua dissertação sobre o tema e explica a importância do tombamento. “Como o prédio é um patrimônio, não pode ser demolido e nem sofrer grandes mudanças. Uma das diretrizes, por exemplo, garante que as guaritas não sejam retiradas, porque elas demonstram que existia vigilância ali. Outro espaço, da piscina e a sauna, onde supostamente ocorreram torturas de “esquenta e esfria” e sessões de afogamento, também não pode ser alterado. Tudo isso é fundamental para a preservação do espaço”

A historiadora destaca que a Comissão da Verdade identificou 24 lugares de tortura em Minas Gerais, mas o prédio do DOPS é um dos mais referenciados. “Embora não fosse uma regra, a sede do Dops/MG costumava ser o primeiro lugar do sistema repressivo pelo qual os presos políticos eram encaminhados. Muitas pessoas passaram por ali, então aquele lugar se transformou, de fato, em um território de memória, do qual eles se apropriam com muita veemência. Tem um monumento na porta com os nomes dos 54 mortos e desaparecidos no estado. Os familiares costumam depositar velas e flores lá”, afirma.

Em relação à transformação em Memorial dos Direitos Humanos, Raiza aponta que a demora para a concretização do projeto se deu por razões simbólicas:

“É importante pensar que no Brasil existe o que o professor Rodrigo Patto chama de “cultura político-conciliatória”, ou seja, a gente não tem coragem de enfrentar alguns conflitos”. Ela explica que existe uma questão sensível para que o Memorial seja instalado, visto que a ideia é de um antigo prédio da polícia, no centro da cidade, evidenciando problemas sérios do passado. “Vai ser um lugar que vai escancarar a tortura aqui, no meio da Afonso Pena. O Memorial foi criado em 2000, por lei, e até hoje não foi instituído. Na minha dissertação, eu chamei isso de “lógica da protelação” que o Estado utiliza. Existe uma relação de difícil definição do que vai ser aquele espaço, com os familiares das pessoas desaparecidas, com os ex-presos políticos”. 

Robson Sávio, doutor em Ciências Sociais e coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais, afirma que o prédio do Dops pode significar, no presente, um símbolo da resistência ao governo ditatorial. “É importante mostrar para as pessoas não só o que foi aquele local, mas também o que significa esse período tão nebuloso da nossa história. É um local estratégico em termos de memória do passado, para que esse passado não possa se repetir”. 

Amanda Pena

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