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BTS with Joe Biden in the White House
Membros do BTS reunidos com o presidente Joe Biden na Casa Branca dos Estados Unidos - Créditos: reprodução/perfil oficial da Casa Branca

Hallyu: como a Coreia do Sul transformou o K-pop em ferramenta política

Entenda como os fenômenos culturais Parasita, BTS e PSY se encaixam dentro de uma poderosa estratégia política do governo sul-coreano

Nos últimos dez anos, a música pop sul-coreana se tornou um fenômeno de alcance global. Com coreografias envolventes e canções que correspondem aos anseios da Geração Z (pessoas nascidas entre 1995 e 2010), grupos de K-pop como BTS e Blackpink quebraram recordes e alcançaram o topo das paradas musicais. Mas você sabia que isso faz parte de uma das políticas de Estado mais eficientes nas relações internacionais?

A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro deste ano, mostrou que a força da guerra já deixou de ser a forma mais eficaz de dominar outro país. Há muito tempo, grandes potências como os Estados Unidos e a China utilizam da própria cultura como estratégia de poder. Porém, a Coreia do Sul se tornou um dos principais exemplos de como é possível fazer política através da música, do cinema e da culinária.

Hoje, as obras coreanas ocupam espaços nunca antes imaginados. Em 2020, Parasita se tornou o primeiro longa de “língua estrangeira” a vencer o Oscar de melhor filme. No ano seguinte, outro grande feito: a premiada série Squid Game (Round 6) se tornou a atração mais vista da história da Netflix, com mais de 142 milhões de visualizações em apenas um mês de exibição. Até então, a série mais assistida do serviço de streaming era Bridgerton, com 82 milhões de visualizações.

Décima maior potência econômica do mundo (acima de Rússia e Brasil), a Coreia do Sul é sede de empresas como Samsung, LG, KIA e Hyundai. Líder em inovação tecnológica no mundo, o pequeno país peninsular asiático se tornou também um grande exportador de produções audiovisuais. E isso começou três décadas atrás. 

Geopolítica, Hallyu e economia

A explosão da cultura coreana nos países não-asiáticos é resultado de projeto político, não de coincidências. Na década de 1990, em meio à crise econômica, a Coreia do Sul lidava com a entrada de diversos produtos estrangeiros em seu território, o que desestimulava a produção e consumo da indústria nacional e bens culturais, como filmes, músicas e livros. Buscando soluções para o problema, em 1995, o governo local deu início à política ‘Hallyu’, ou ‘Onda Coreana’.

Através de investimentos no setor cultural, o Estado promoveu o desenvolvimento de produtos nacionais que se destacariam sobre os estrangeiros. As medidas protecionistas tinham como objetivo expandir a influência do país em relação à comunidade internacional, uma estratégia de ‘soft power‘, termo das Relações Internacionais que define quando uma nação utiliza de bens culturais para se beneficiar politicamente.

Depois de 27 anos, os resultados nunca foram tão visíveis pelo resto do mundo: artistas nacionais entre os mais ouvidos, produções audiovisuais entre as mais assistidas e premiadas, crescimento do interesse pelo idioma e pelo turismo e, é claro, retorno financeiro.

Apenas no ano de 2020, o Ministério da Cultura da Coreia do Sul recebeu mais de 6 trilhões de Won em investimentos (cerca de R$ 25 bilhões), quase 2% do orçamento total do país voltado para o setor. Em contrapartida, a cada U$ 1 investido, retornam ao país U$ 5 através de exportações de produtos.

Gastrodiplomacia

A culinária, símbolo de tradição e história, também é utilizada nas relações internacionais por meio de políticas públicas que visam difundir elementos culturais. Durante o período de 2009 a 2017, o governo da Coreia do Sul investiu o montante de U$ 77 milhões no Ministério da Agricultura, Alimentos e Assuntos Rurais para levar ao ocidente o potencial da culinária coreana. O objetivo é colocar a cozinha sul-coreana no top cinco mundial em um futuro próximo. Segundo Daniela Mazur, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do artigo “Além da cultura pop: o interesse e consumo da gastronomia sul-coreana no Brasil“, a gastrodiplomacia é uma das ferramentas da política exterior do país para intensificar seu soft power e, consequentemente, cultivar frutos econômicos.

“Seu potencial é tão grande e compreendido pelo governo sul-coreano que a campanha gastrodiplomática do país é conhecida como Diplomacia Kimchi”, em referência ao prato típico considerado base da alimentação dos coreanos. “O governo sul-coreano tem consciência de que restaurantes étnicos são a primeira ou, às vezes, a única conexão dos estrangeiros com outras culturas, então os cardápios são chaves para trocas culturais”, destaca a autora, no artigo.

No Brasil, está cada vez mais comum encontrar restaurantes da culinária coreana. Em reportagem da revista “Pequenas Empresas & Grandes Negócios”, da editora Globo, intitulada “Impulsionado por K-pop, casal fatura R$ 400 mil com empresa de alimentos coreanos”, conhecemos a história do casal Kim e Guilherme, que iniciou um pequeno empreendimento alimentício em Belo Horizonte com cardápio de pratos típicos da Coreia do Sul. A divulgação, feita em grupos de fãs de K-pop interessados em conhecer os alimentos que assistiam em séries e filmes, garantiu ao casal um faturamento de R$ 6 mil por mês em 2021.

Ex-estudante da PUC Minas, a jornalista Samantha Burton é mais um exemplo de como a expansão da cultura coreana mudou as vidas de brasileiros. Atualmente ela mora Seongnam, na Coreia do Sul, onde faz mestrado, e conta como os produtos culturais foram determinantes para conhecer o país: “A Coreia não estava em meus pensamentos antes de 2018, quando descobri o K-pop. Cheguei muito tarde nesse movimento e peguei o ‘bonde andando’. Comecei a enxergar o K-pop com uma pegada mais acadêmica, visto que o fenômeno da onda coreana ainda é muito pouco estudado. Se não tivesse vindo pra cá, nunca teria descoberto todo esse potencial que a cultura deles proporciona”, revela.

Samantha Burton destaca, ainda, que muitas pessoas não levam a cultura coreana a sério, mesmo tendo diversos aspectos que podem ser estudados: “K-pop, série na Netflix… Muitas pessoas se perguntam: ‘por que vou estudar isso?’. Mas temos que pensar em tudo que está por trás. É isso que está fazendo a Coreia virar uma potência cultural, assim como outros países”.

O crescimento do K-pop na indústria fonográfica

Criado no final dos anos 1980, o K-pop cresceu de forma exponencial a partir de 2012, quando estreou o single Gangnam Style, do rapper PSY. O clipe da faixa foi o primeiro vídeo a atingir 1 bilhão de visualizações no YouTube e o primeiro contato de muitas pessoas com a música coreana.

Para Laiza Kertscher, sócia da produtora de eventos Highway Star, especializada na realização de shows do estilo, PSY transformou o K-pop de um fenômeno de nicho em sucesso mundial. “Ainda que não seja um artista típico do K-pop, já que não é jovem e não tem aquele perfil do ídolo padrão, ele deu uma nova visibilidade para o gênero. Isso é inegável pela história, pelo marco que ele tem na indústria fonográfica”, complementa.

A empresária destaca que a atuação das agências na internet é outro fator determinante para a popularização do K-pop na última década. “Eu acho que o que fez o K-pop crescer é o bom uso que as agências e gravadoras coreanas fazem da internet. O fato de usarem a internet como a principal forma de divulgação dos seus produtos fez com que eles chegassem à pessoas disponíveis para conhecer um novo estilo musical”, afirma.

Laiza Kertscher também diz que a indústria da música estava precisando de uma renovação em seus rostos, vozes e estilos, e que o K-pop surge bem nessa época, suprindo demandas e fazendo bom uso das mídias sociais para desenvolver uma base de fãs. “É uma mudança na lógica da indústria fonográfica. Na minha geração, o Rock era predominante, mas os seus artistas não conseguiram se adaptar às redes sociais. Então, eles acabaram não conquistando esse [novo] público, como cantores de outros estilos fizeram. Claro, o K-pop não é o único, mas eu diria que é o [gênero] que melhor soube aproveitar as [novas] tecnologias para interagir com seu público”, aponta.

Sete membros do grupo BTS vestidos com terno e dez fãs com roupas casuais posando para uma foto descontraída.
Quatro membros do grupo KARD e dezessete fãs com roupas casuais posando para foto descontraída.
Laiza e BTS
Laiza e KARD
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O K-pop ainda pode crescer mais. Enquanto o público estiver digerindo de uma forma legal, e as produtoras continuarem investindo e trazendo artistas novos, tem tudo pra crescer”.

Segundo a especialista, o crescimento do K-pop no Brasil ocorreu de forma gradativa, começando por São Paulo e expandindo para outros estados. Maior grupo do pop coreano, o BTS fez uma apresentação para 1.500 pessoas na capital paulista, em 2014. Cinco anos depois, a banda esgotou ingressos para duas datas na cidade, onde fez dois shows para 42 mil pessoas.

Ranking de popularidade de grupos de K-pop no Brasil nos últimos anos

Dados do Google Trends.

Os catalisadores: internet e globalização

Uma das pessoas que foram influenciadas por esse trabalho feito em mídias sociais é Érica Imenes, conhecida no Instagram como “Afro K-poper”. Grande propagadora da cultura coreana, a criadora de conteúdo produziu entre 2019 e 2021 o podcast “Kpapo”, do Spotify Studios, que alinhava a música com a discussão de pautas sociais importantes. 

Para Érica, os fãs de K-pop fora da Coreia foram forjados na internet, já que ela é a única forma de eles consumirem a cultura coreana fora do país asiático. “Esses meios possibilitam que tenhamos aproximação com os artistas que gostamos. As fanbases têm um papel fundamental nessa divulgação e crescimento, pois disseminam  informações. A gente não só consome pelas plataformas, mas também difundimos a cultura que fez algo positivo para nós. Não é só consumir pela internet, mas pensar como a gente pode usá-la para impactar mais pessoas”, conta a digital influencer.

A fórmula do cinema sul-coreano

Um grande parque industrial cinematográfico, bons filmes de gênero e uma brilhante escola de roteiristas. Para Robertson Mayrink, mestre em Cinema pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do curso de Cinema e Audiovisual da PUC Minas, esta combinação é a chave para o sucesso do cinema sul-coreano.

Em 2004, o longa Oldboy venceu o Grand Prix no Festival de Cannes. Oito anos depois, Pieta ganhou o Leão de Ouro em Veneza. Já em 2020, Parasita quebrou barreiras e foi o filme mais premiado da 92ª cerimônia do Oscar. 

“A partir do momento em que passou a investir forte nessa indústria, a Coreia conquistou todos os principais prêmios de cinema do mundo. E mais importante ainda, com uma política de dar liberdade criativa para os autores, sem interferência do Governo. A Coreia saiu de uma ditadura militar muito forte nos anos 1980, que restringia a produção de filmes que não fossem politicamente compactuados com esse regime. Naquela década, ela passou a investir em um cinema mais independente, crítico e social. Nos anos 1990, esses filmes ganharam um aspecto mais humano e, nos anos 2000, [o cinema da Coreia] estourou”, pontua o especialista.

Robertson Mayrink afirma que o grande sucesso de Parasita representa um recado para os cinemas dominantes, não só dos Estados Unidos, mas também de Inglaterra, França e Itália.
“Uma coisa que acho importante nesse tipo de cinema [emergente] é o tratamento do gênero cinematográfico. O gênero tem um poder de dialogar com o mundo inteiro, porque é muito atraente. E a Coreia do Sul tem feito muitos filmes de gênero, como Invasão Zumbi, de horror, e Expresso do Amanhã, de ficção científica. Esses filmes, aliados a um parque tecnológico muito forte, que possibilita a criação de grandes efeitos visuais, fazem com que o cinema sul-coreano tenha uma leitura universal”, destaca o professor. 

Na visão de Robertson Mayrink, essa grande capacidade produtiva diferencia os filmes de terror e ficção sul-coreanos dos longas feitos em países como o Brasil, que não conseguem ter o mesmo investimento em efeitos audiovisuais. “Quando você vê um filme [de um país] que tem um parque tecnológico já desenvolvido, você está vendo algo que tem basicamente a mesma estética [das produções de um] dos grandes países dominantes”, conclui. 

Reportagem de Filipe Sodré, João Victor Pena, Lucas Marra, Matheus Moreira, Matheus Pacheco, Miguel Bessa e Rodrigo Leonel para a disciplina de Laboratório de Jornalismo Digital no semestre 2022/1.

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