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Uma figura masculina de terno preto segurando uma bola de futebol em uma de suas mãos, ele está em um fundo verde desfocado que remete a um campo de futebol.
Homem segurando uma bola em um campo de futebol

Fenômeno SAF de gestão de clubes chega ao Brasil

Após dois anos de lei, modelo SAF vira tendência e muda a dinâmica de administração dos clubes

Os clubes de futebol brasileiros passam por reformas administrativas a partir de uma nova legislação que permite a exploração comercial com fins lucrativos. Até o momento, pelo menos 24 clubes já viraram o que vem sendo chamado de Sociedade Anônima de Futebol (SAF). Mas, afinal, você sabe o que é SAF e o que isso pode impactar nos clubes? A Lei 14.193/2021, mais conhecida como Lei da SAF, está em vigor no Brasil desde agosto de 2021 e possibilita a transformação de clubes em sociedades anônimas. Desde então, diversos times brasileiros aderiram à SAF, entre eles estão Bahia, Botafogo, Cruzeiro e Vasco. Entretanto, muitos aspectos sobre as mudanças ainda são desconhecidos pelo público.

O que é SAF e qual a diferença para associação civil?

A SAF é uma empresa na qual a atividade principal consiste na prática do futebol em competições profissionais com o intuito de gerar fins monetários, diferentemente dos clubes tradicionais, que, por sua maioria, não possuem fins lucrativos.

Antes da SAF, grande parte dos clubes no Brasil eram associações civis. Isso significa que as equipes de futebol eram geridas por um grupo de sócios, que elegiam um presidente e um Conselho Deliberativo. Neste caso, o presidente do clube e seus sócios são proibidos de vender qualquer parte do clube para obtenção de lucro.

Uma vez transformado em SAF, o clube é limitado a vender até 90% das ações, mantendo 10% vinculado ao clube social, visando assim aos lucros e se tornando um clube-empresa, como explica o advogado e professor do curso de Direito Mateus de Moura Ferreira, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). “Pela lei da SAF, essa parte mantida com a associação não tem funções administrativas, justamente para que você possa entregar a gestão do futebol para a atividade empresarial. Então, se a gestão do futebol fica com a atividade empresarial e você dá autonomia para que eles possam tomar as melhores decisões possíveis, é uma questão de organização que trabalha com toda estrutura do futebol. E aí eu vejo que é a melhor forma possível para que os vícios que existem nas associações, os problemas de conselho, não possam interferir na gestão da SAF.”

Para o jornalista Rodrigo Capelo, especializado em finanças do futebol,  a SAF é uma possível maneira de melhorar a parte administrativa dos clubes. “A grande diferença é política, principalmente. A associação civil sem fins lucrativos tem sócios que elegem conselheiros, presidente e vice-presidente amadores, essas pessoas compõe a direção, elas têm eleições e esse sistema faz com que a associação pareça muito mais com o governo do que com uma empresa de fato. E quando você vai para a empresa, você tem acionistas. Pode ser um só, podem ser vários, podem ser pulverizados em bolsa de valores, tem vários modelos possíveis, mas são os acionistas que são donos de fato daquilo que vão se responsabilizar financeiramente pelos resultados que a empresa gerar.”

Segundo Capelo, isso faz diferença na gestão, pois a natureza de uma associação civil costuma ser mais politizada, ela tem vida política mais agitada do que entre acionistas. “Tem questão tributária, de governança, mas o que eu sempre ressalto como principal diferença é a parte realmente política.”

Para Francisco Brinati, pesquisador de comunicação e esporte, a transição da associação para SAF envolve muitos aspectos, como os afetos da torcida, por exemplo “por ser um clube privado, mas que mexe com interesse público”. “Vou dar o exemplo aqui do Flamengo, 42 milhões de torcedores pelo país. Então, a partir do momento que você vende o futebol de um clube para uma empresa, para um grupo de investidores, você entrega para eles a gerência sobre esse esporte, sobre essa pasta, digamos assim, do clube. Então eles acabam imprimindo questões que não estão ou não estavam na cultura do futebol brasileiro, como visar lucro. Você tem clubes laboratórios. Por exemplo, o grupo do Manchester City faz isso pelo mundo.” Brinati destaca clubes laboratórios como ambiências onde jogadores e treinadores têm a possibilidade de se destacarem e, assim, passarem a integrar os principais clubes da empresa, como é o caso do Manchester. 

Esse modelo de negócio ainda é discutido e controverso, porque envolve fatores que vão além da paixão do torcedor pelo time. Outro exemplo que Brinati destaca é do ex-treinador do Cruzeiro, Paulo Pezzolano, que, ao conseguir êxito com o clube mineiro, transferiu-se para o Valladolid da Espanha, um clube que possui o mesmo proprietário do clube celeste, Ronaldo Fenômeno. “Acaba que o interesse maior seria da Espanha, não do Cruzeiro. Dá essa impressão. Parece que viram clubes pontes, que é apenas a passagem para levar esses atletas para lá”, pondera Brinati.

Cabe destacar que há clubes, como Flamengo e Palmeiras, que apresentam modelos nos quais não foi preciso estruturar SAF para salvar o futebol de dívidas. Brinati cita o Flamengo, que, antes de se reestruturar administrativamente, possuía uma dívida na casa dos R$800 milhões e agora está em cerca de R$250 milhões. Ou seja, existem outras saídas para que os clubes de massa possam honrar suas obrigações sem que necessariamente virem sociedades anônimas.

SAF x clube-empresa

É preciso diferenciar os modelos de clube-empresa para compreender a SAF. A ideia pode ser a mesma: o afastamento do modelo associativo e a aproximação do empresarial. A especificidade é que toda SAF é um clube-empresa, mas nem todo clube-empresa é uma SAF. Alguns clubes do Brasil já seguiam o modelo de clube-empresa mesmo antes da aprovação da Lei da SAF, Red Bull Bragantino e Cuiabá são exemplos. A principal diferença está no tipo de tributação, as SAF’s por sua vez são tributadas igual às empresas, tudo que uma empresa paga, inclusive FGTS, 5% nos primeiros cinco anos e depois cai para 4%, diferentemente das associações que não pagam.

Em clubes como o Red Bull Bragantino, não há uma alteração na estrutura societária, é feita uma parceria com as empresas, eles não deixam de ser associações e não entregam a administração da associação às empresas.

O que o povo acha?

Por que a SAF virou tendência entre os clubes?

Entre os motivos para as mudanças, o principal se deve às dívidas. O Cruzeiro, por exemplo, que foi o primeiro clube brasileiro a se tornar SAF, estava com uma dívida de mais de R$1 bilhão, beirando a falência. Em dezembro de 2021, Ronaldo Nazário de Lima, ex-jogador de futebol e mais conhecido como Ronaldo Fenômeno, comprou 90% do clube por R$ 400 milhões. 

Outros clubes que passaram pela transição para SAF, como Botafogo e Vasco, também enfrentavam um momento delicado, ambos endividados e participando da série B do Campeonato Brasileiro. A solução encontrada por essas equipes foi a venda de parte dos direitos do clube para empresários ou organizações que, durante a assinatura do contrato de venda, aceitaram pagar parte da dívida do clube. Isso porque, por hora, a justiça permite que os investidores não fiquem totalmente responsáveis pelas dívidas dos clubes, porém para o jornalista Bob Faria, “se a justiça definir que as SAFs são responsáveis pelos passivos, aí eu acho que esse capital vai embora”. Vale destacar que estão em trâmites judiciais para que essa alteração no que diz respeito ao patrimônio passivo, que são dívidas e operações financeiras de um negócio, seja realizada, tornando assim, o comprador da SAF responsável por tais débitos de maneira integral.

Ele ainda destaca que é inevitável a entrada desse capital no futebol brasileiro, nesse momento, porém não é novo esse sistema de administração no Brasil, isso porque na década de 1990, a Parmalat começou a comprar o Palmeiras. O jornalista ainda diz que clubes que estão financeiramente viáveis como Flamengo e o próprio Palmeiras ainda devem manter as portas abertas para fundo de investimentos, pois segundo ele, não é possível que o futebol se mantenha da forma como está, apenas com patrocínio e venda de direitos. No caso do Vasco, a SAF foi adquirida por praticamente o mesmo valor da dívida, pelo 777 Partners.

Gráfico demonstrativo sobre dívidas antes e após as SAF’s:

A SAF, no entanto, não é uma alternativa apenas para clubes que lidam com crise financeira. O Bahia e o América-MG são exemplos. O Bahia vendeu 90% do clube para o Grupo City, com comprometimento de investimento de R$1 bilhão, mas com o intuito de proporcionar mais visibilidade no cenário do futebol brasileiro e mais investimento ao clube. 

“O Bahia, quando vende a SAF ao Grupo City, paga todas as dívidas num curto prazo, o que é um modelo mais seguro do que as SAF’s de Cruzeiro e Botafogo, que dependem de recuperações judiciais para conseguirem equacionar suas dívidas. Cada caso, quando estudado de forma isolada, oferece riscos diferentes”, enfatiza Capelo.

Já o América-MG, que vivencia uma grande fase, incluindo a primeira participação da equipe na Copa Libertadores da América e a melhor campanha na história do clube na Copa do Brasil, vem em grande fase e com dívidas baixas, e também optou pela transformação em SAF. Em nota oficial, o América-MG, que é uma SAF ainda sem investidores, destaca não ter pressa para vender sua Sociedade Anônima: “O América tem vários compradores interessados, mas a questão do investidor da SAF não pode ser resolvida de qualquer forma. É um assunto muito sério. O Clube não está desesperado para ter um comprador pois não está endividado. O América entende que o processo de ter um investidor é importante para ampliar o potencial de recursos do Clube, mas requer atenção e estudo de como será feito. É um “casamento” que precisa ter as cláusulas bem estudadas para não gerar arrependimento no futuro.”

Apesar da tendência, para o jornalista Rodrigo Capelo, não existe um modelo de administração ideal a ser seguido. “Eu considero que não existe modelo ideal, nem de associação, nem de empresa, nem de SAF. Tudo vai depender de pessoas, quem são as pessoas que estão participando tanto da administração profissional quanto do corpo de acionistas? Sejam eles sócios, sejam acionistas donos da empresa. De fato, se essas pessoas forem aventureiras, competentes, malucas, irresponsáveis, qualquer modelo que seja vai gerar resultados ruins ou bons”, explica Capelo.

Mapa das SAF’s no Brasil por UF:

Modelo demanda tempo para estruturação

Apesar do entusiasmo dos torcedores brasileiros que se preocupam com o futuro financeiro de seus clubes de coração, dados referentes aos balanços financeiros do ano passado de Vasco-RJ, Botafogo-RJ e Cruzeiro-MG apontam que os times continuam deficitários mesmo após as aquisições de ações por 777 Partners, John Textor e Ronaldo Fenômeno, respectivamente.

Para o jornalista  Rodrigo Capelo, não se pode imaginar que a solução para todos os problemas seja a transformação dos clubes em SAF. “Tem riscos que são comuns às associações (e as SAF’s), que é o de fazer uma administração ruim, de não vencer dentro de campo, mesmo com uma administração endireitada. Não é porque o clube virou empresa que ele deixa de ter problemas para fechar contas no final do mês. O que acontece é que, dependendo do modelo de cada SAF, há riscos diferentes.”

Dentre os três clubes, o cruz-maltino, apenas no exercício de 2022, além da dívida da associação civil, foi o que registrou maior déficit, totalizando R$594 milhões, mesmo após ter se transformado em SAF. O segundo maior prejuízo no mesmo período pertence ao Botafogo, com R$248 milhões. Pode-se considerar que a  SAF que se tornou mais saudável financeiramente foi  o clube celeste de Minas, que marcou R$24,6 milhões negativos em 2022.

Procurados, Vasco da Gama e Cruzeiro não responderam às tentativas de contato da nossa reportagem até a publicação.

Conteúdo produzido por Ana Luiza Diniz, Bruno Paz, Clara Fonseca, Karen Cristina, Lavinia Aguiar e Lucas Parreiras na disciplina Apuração, Redação e Entrevista, sob a supervisão da professora e jornalista Fernanda Sanglard e do estagiário docente Marcus Túlio.

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