Por Carlos Eduardo Noronha.
Até que ponto você iria para alcançar seus objetivos? Para conquistar dignidade, respeito e posição social? Para ter um lugar ao sol? Esta é a premissa da trama criada e escrita por Lícia Manzo, com colaboração de Carla Madeira, Cecília Giannetti, Leonardo Moreira, Rodrigo Castilho, Dora Castellar e Marta Góes, direção geral de André Câmara e direção artística de Maurício Farias. A primeira semana, de 8 a 13 de novembro, trouxe para o horário nobre frescor de um enredo inédito após dois longos anos de reprises, em formato de edições especiais; e deixou ótimas impressões em torno da primeira obra da autora titular para a faixa.
Um Lugar ao Sol conta a história de Cristian e Renato, gêmeos idênticos vividos por Cauã Reymond, separados durante a infância e que, na fase adulta, se reencontram. Enquanto Cristian cresceu em um orfanato humilde no interior de Goiás, Renato foi adotado por uma família tradicional carioca e vive desfrutando de todas as mordomias que o dinheiro dos pais pode comprar. Mas tudo muda quando Cristian descobre a existência do irmão e decide morar no Rio de Janeiro a fim de conhecê-lo; paralelamente, no leito de morte, o pai adotivo de Renato revela que ele não é seu filho biológico – fato até então desconhecido pelo rapaz.
“É um conflito entre manter sua essência, seguir as coisas que você acredita, e aproveitar uma oportunidade que a vida te dá de romper com tudo isso. Com alguns custos, é claro, como abandonar uma série de valores e também um grande amor” – Maurício Farias.
Cauã Reymond já havia interpretado gêmeos em Dois Irmãos (2017), minissérie baseada na obra de Milton Hatoum, adaptada por Maria Camargo e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Yaqub e Omar eram filhos de Halim (Bruno Anacleto/Antônio Calloni/Antônio Fagundes) e Zana (Gabriela Mustafá/Juliana Paes/Eliana Giardini), mãe intrigante que, ao direcionar olhares subjetivos a cada um dos filhos, acabou testemunha de uma grande rivalidade. Já nesta época, vimos o ator interpretando personagens densos e completamente distintos.
Contudo, na trama contemporânea, as diferenças entre os irmãos não decorrem apenas das individualidades acentuadas pelo DNA. Elas se manifestam muito em função do ambiente e das relações estabelecidas. Aliás, uma característica fundamental das obras de Lícia Manzo é o diálogo artesanal capaz de traduzir relações humanas e familiares do dia a dia. Neste sentido, ela explica que não pretende fazer de sua dramaturgia uma cartilha para resolução de conflitos por meio das palavras, mas deseja “que as pessoas possam buscar soluções mais criativas, mais humanas para poder conviver em sociedade. Porque no fim das contas, numa instância política, ou na escola, ou na família, é disso que se trata a vida.”
“Eu realmente tenho um amor muito grande e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, uma dificuldade com gente. Quando eu digo dificuldade é que eu acho que todo escritor é um pouquinho disfuncional. Se eu soubesse aproveitar muito a vida talvez eu estivesse vivendo e não escrevendo. Então, é um amor que eu tenho por esse tema. De poder buscar soluções de aproximação para as pessoas. Então acho que meu cuidado quando vou escrever sobre família é ser pessoal, não me subtrair da discussão, me colocar como sujeito” – Lícia Manzo.
Outro personagem que vem chamando bastante atenção é Ravi (Juan Paiva), jovem filho de uma falecida usuária de drogas, marcado por traumas e crises psicológicas. Ele cresceu ao lado de Cristian no mesmo orfanato e, juntos, chegaram a ser adotados como irmãos por certo tempo. Acabaram voltando à instituição. A proximidade entre os dois se manteve e, agora, moram em uma comunidade carioca. A prisão injusta do rapaz, no segundo capítulo, provoca o telespectador e promove reflexão quanto ao tratamento de vidas negras no Brasil.
O paradoxo justiça/injustiça, inclusive, se faz presente já na música tema Sulamericano, da banda BaianaSystem. A abertura retrata as contradições acentuadas pelo estilo de vida de cada um dos protagonistas, que percorrem as ruas da “cidade maravilhosa” – como dois lados da mesma moeda – até se fundirem num só.
ABERTURA DE UM LUGAR AO SOL
A junção é metáfora das escolhas que Cristian terá que fazer ao longo do tempo. Como já se sabe, Renato é assassinado e, a partir disso, o irmão assumirá sua identidade. “Ao trazê-los para o centro da trama, ou mais que isso, ao fundi-los em um só, questões como integridade, ética, desigualdade social são levantadas na novela, não de um ponto de vista estatístico ou factual, mas íntimo, subjetivo e humano”, explica a autora.
Além disso, Cristian, que estava envolvido com Lara (Andreia Horta), se unirá a Bárbara (Aline Moraes), herdeira de um rico empresário, após a morte do irmão. Lara, que esbanja carisma e simpatia, acredita que Cristian morreu e terá o desafio de levar a vida adiante. Já Bárbara, que vivia um relacionamento conturbado com Renato, terá que lidar com as consequências de um casamento com um homem fisicamente igual ao namorado morto, mas com personalidade completamente distinta. Tudo isso através das sutilezas e cuidados do texto de Lícia Manzo que, desde o primeiro capítulo, tem se revelado dinâmico e certeiro.
“Mulheres representam metade da humanidade, embora até hoje sejam tratadas como uma espécie de minoria. Escrever uma trama sem personagens femininas centrais seria escrever sobre um mundo manco. Um mundo que não conheço” – Lícia Manzo.
Outro destaque vai para a avó de Lara, Noca (Marieta Severo). Muito similar à Iná, personagem de Nicette Bruno em A Vida da Gente – trama das 18h de mesma autoria –, Noca parece funcionar como um oráculo. Através de sonhos, do tarô e de pressentimentos, ela acompanha a neta nos momentos mais difíceis e buscará convencê-la a seguir em frente, depois de “perder” seu grande amor.
Marieta Severo integra o time de atores que viverão conflitos típicos da terceira idade – outro tema recorrente na obra da autora. Além dela, também estão presentes Reginaldo Faria, Regina Braga e José de Abreu. O elenco é composto ainda por nomes como Andreia Beltrão, Natália Lage, Mariana Lima, Denise Fraga, Marco Ricca, Ana Beatriz Nogueira, Gabriel Leone, entre outros.
CHAMADA DE ELENCO DE UM LUGAR AO SOL
Um Lugar ao Sol é mais que uma novela da autora amadurecida, estreante no horário nobre; mais que uma obra produzida durante crises mundiais; mais que ineditismo de ir ao ar com 107 capítulos já gravados, retirando-lhe o caráter de obra aberta. Um Lugar ao Sol é sinônimo de recomeço, de que as coisas estão se readequando depois de um período marcado por incertezas.
A obra traz todas as características do melodrama em forma de folhetim: tem se mostrado um novelão, no melhor sentido da palavra. Fotografia capaz de impor personalidade única, diálogos bem-acabados e trama central cativante. Além disso, é a oportunidade de refletirmos um pouco mais sobre a realidade que nos cerca através do entretenimento gratuito. Porque é função da teledramaturgia entreter, mas provocar e refletir é função dela também.
LÍCIA MANZO: SIMPLICIDADE NOS GESTOS, CUIDADO NOS DIÁLOGOS
Lícia Manzo nasceu no Rio de Janeiro em 28 de março de 1965 (56 anos). Foi atriz durante 15 anos, período em que encenou peças de autores como William Shakespeare e Bertolt Brecht, e participou dos espetáculos A Aurora da Minha Vida e La Ronde. Aos 30, abandonou a carreira de atriz e iniciou-se como dramaturga.
Seu primeiro trabalho na TV foi em 1992, quando escreveu para Os Trapalhões a convite de José Lavigne. A partir daí, colaborou nos humorísticos Sai de Baixo (1996), Retrato Falado (2001) e A Diarista (2004). Colaborou também na temporada 2003 de Malhação, assinada por Andrea Maltarolli; e integrou a equipe de colaboradores da novela Três Irmãs (2008), de Antônio Calmon.
Seu primeiro trabalho com autora titular foi a minissérie Tudo Novo de Novo (2009), com texto inspirado em Malu Mulher (1979). “A ideia me instigou depois de tantos anos porque hoje em dia o número de divórcios é quase igual ao número de pessoas que seguem casadas”, conta a escritora.
A partir daí, Lícia assinou duas produções para as 18h: A Vida da Gente (2011) e Sete Vidas (2015).
A VIDA DA GENTE (2011)
O drama das irmãs Ana (Fernanda Vasconcelos) e Manuela (Marjorie Estiano) foi o primeiro trabalho de Lícia Manzo como autora titular de novelas – e começou com o pé direito. Dirigida por Jayme Monjardim, a história se passava no eixo Porto Alegre-Gramado e girava em torno dos conflitos familiares e humanos construídos em torno das personagens.
“O que eu acho bonito na trama desses personagens é o tempo. Você não mergulha duas vezes no mesmo rio, porque na segunda vez o rio está diferente e você também, e às vezes a gente custa pra aprender isso. A beleza era essa: tentar viver através do que diz Belchior, que o passado é uma roupa que não serve mais.” – Lícia Manzo.
SETE VIDAS (2015)
Durante um café, após o término de A Vida da Gente, autora e diretor decidiram que produziriam um próximo projeto. Nesta conversa, foram discutidos alguns assuntos e ambos chegaram à trama de Sete Vidas. “Ele me falou que tinha vontade de trabalhar com o tema da Antártica e eu falei que tinha visto uma matéria sobre filhos de doadores que se agrupavam via um site de internet e se descobriam meios-irmãos”, conta Lícia.
Além da conversa, a roteirista se inspirou em Rei Leão para compor a história de Miguel (Domingos Montagner), protagonista da novela, e que tal referência causou certa decepção em parte do público.
“Acho engraçado como as pessoas levam a sério essa coisa de vaidade intelectual, como se fosse mais nobre eu citar Dostoiévski. A Clarice Lispector, que é minha musa eterna, falava que o maior elogio que havia recebido na vida tinha vindo do Guimarães Rosa, que falou: ‘Eu leio Clarice não pra literatura, mas pra vida’” – Lícia Manzo.