Por Carolina Cassese.
“Quando vocês pediram pra gente escrever alguma coisa da nossa vida, eu achei que não tinha nada pra contar. E até agora eu não sei se eu tenho. Mas depois de um tempo, eu fui tomando gosto de pensar nas coisas que me aconteceram. Comecei a pensar em tudo que eu tinha visto, nas cidades que eu conheci e em todo mundo que eu encontrei pelo caminho. E comecei a pensar muito na Ana. E fiquei pensando que, de tudo que eu vivi, essa história é a que eu mais ia gostar de escrever”.
O diário de um trabalhador.
Quando o jovem André encontra esses escritos, o espectador é convidado para mergulhar na história de Cristiano, um operário que, como tantos brasileiros, começou a vida na lavoura, passou pela construção civil e depois foi para a indústria. Essa é a premissa do filme Arábia, dirigido pelos mineiros João Dumans e Affonso Uchôa. O longa foi o grande vencedor do 50° Festival de Brasília, conquistando quatro prêmios, inclusive o de melhor filme.
O filme já rompe um estereótipo significativo ao associar o operário com o universo da escrita. Cristiano pode até não saber ler e escrever perfeitamente, mas descobre que tem muitas histórias para compartilhar. A vida do personagem, que roda pelo estado de Minas Gerais, não é menos interessante do que a vida de uma pessoa que dá voltas pelo mundo. Cada lugar que Cristiano passa tem a sua particularidade e cada pessoa que ele conhece na estrada acrescenta algo na narrativa.
Ele não é retratado de forma caricata e o espectador consegue enxergá-lo de maneira horizontal, como se estivesse ao seu lado. A dura realidade do operário é representada de forma sensível, sem maniqueísmos. Arábia exala o natural. Na cena em que Cristiano e seus colegas cantam Cowboy Fora da Lei, de Raul Seixas, é difícil encontrar algum resquício de artificialidade. A interpretação de Aristides de Sousa, conhecido como Juninho, auxilia na construção dessa espontaneidade. Como afirma Affonso Uchôa, “o ator não passou pelas mesmas situações que Cristiano, mas poderia ter passado”. O romance de Cristiano com Ana (Renata Cabral) é simples, crível e emocionante.
Para qualquer espectador minimamente atento e empático, é possível observar que, em Arábia, o mito da meritocracia é desmontado. Cristiano tem vontade de acordar cedo e trabalhar. Por anos, se esforçou e desempenhou diferentes funções. Não ascendeu socialmente com nenhuma delas. Em um sistema desigual e excludente, quem nasce em um contexto marginalizado tem pouquíssimas oportunidades ao longo da vida.
É bonita também a conexão criada entre Cristiano e André, o garoto que aparece logo no começo. Apesar de pertenceram a realidades distintas, os dois experimentam constantemente um sentimento parecido: o da solidão, o de não pertencimento. André escolhe mergulhar na realidade de Cristiano, enquanto o operário também se interessa pela vida de André. A fábrica suga a energia e as esperanças de ambos.
Em tempos de reformas que esmagam os direitos dos trabalhadores, de candidatos que se intitulam “novos”, mas defendem os interesses dos velhos donos do poder, assistir e se emocionar com Arábia é preciso.
“E a fumaça subindo, preta igual a noite. Tampando o céu e jogando o dinheiro fora. E a gente ia estar em casa, tomando água, dormindo a tarde. A gente ia tossir a fumaça preta, ia cuspir fora os pedaços de ferro do nosso pulmão. Nosso sangue ia voltar a ser vermelho, que nem quando a gente é novo”.
Carolina Cassese é estudante do 4º período de Jornalismo da PUC Minas.