Por Daura Campos.
Poderia a lente fotográfica condicionar, e retroativamente, explicitar o preconceito racial no Brasil? Travessia (2017) faz emergir este questionamento e essa possibilidade, em uma construção narrativa na qual as imagens de arquivos, paradoxalmente, limitam e ampliam a noção global de quem realmente importa na sociedade. Esta discussão se dá a partir de diversas intersecções, em especial as de raça e classe neste documentário dirigido, produzido e roteirizado por Safira Moreira, celebrado internacionalmente como o filme de abertura do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam em 2019.
Durante o primeiro ato, uma imagem de arquivo intitulada “Tarcisinho e sua babá” – na qual uma mulher negra, a babá sem nome, segura em seus braços Tarcisinho, uma criança branca – é justaposta a locução do poema Vozes Mulheres, de Conceição Evaristo. O objetivo é propor reflexões sobre as imagens de arquivo de pessoas negras no Brasil, em sua grande maioria, heranças e vestígios do período colonial no país. Elas são, literalmente, a representação dos impactos causados pela branquitude, já que, historicamente, pessoas brancas são donas do meio de produção (e) da imagem.
Em um contexto em que a criação e a digestão de imagens reflete possibilidades de reconhecimento e de afirmação de cidadania, o apagamento histórico da população negra no Brasil nega o direito deste grupo de ser representado com acurácia. A visibilidade de corpos diversos impacta suas existências perante a esfera pública. Na contramão de um apagamento sistêmico, certas imagens de arquivo, proporcionadas pelo advento da Fotografia, podem se configurar como documentos que comprovam a existência de alguém, ou de um acontecimento, em dado espaço-tempo.
A Fotografia, como é conhecida hoje, é uma prática artística relativamente recente, tendo seu início documentado em 1830. Contudo, a prática fotográfica adentraria as casas da população, de forma geral, apenas no início dos anos 1940, a partir da incorporação do negativo analógico em seu processo. Isto posto, por trás da criação de uma imagem, há diversos vieses implícitos. Nem todos tiveram acesso imediato a essa tecnologia.
O primeiro obstáculo, o de classe, que interfere na acessibilidade ao equipamento fotográfico, filtrando os consumidores e as imagens produzidas. Cabe destacar que as imagens de arquivo que hoje podemos contemplar foram produzidas, majoritariamente, por pessoas brancas, que se fotografavam entre si. Pessoas racializadas, se presentes, eram os “objetos” da representação de pessoas brancas. Isto é explicitado no depoimento presente no segundo ato do filme de Moreira: “Essa coisa de fotografia era uma coisa muito cara […] Isso era uma raridade né? Não fazia parte do cotidiano nosso, das famílias negras, ter esse registro”. A fala é sobreposta às imagens de arquivo encontradas nas feiras de antiguidade do Rio de Janeiro pela diretora, todas elas proveniente de álbuns de famílias brancas.
Além disso, caso uma pessoa não-branca fosse fotografada, até mesmo o negativo contava com vieses embutidos. Por 50 anos (1940–1990) a pele branca foi categorizada como a norma através dos Shirley cards (tradução livre: cartões Shirley), em que fotos de mulheres brancas eram a base para o balanço de cor das imagens produzidas pelos negativos, consequentemente outros tons de pele necessitavam de cuidados corretivos especiais, muitas vezes ignorados pelos laboratoristas.
Futuramente, este estigma seria refletido na tecnologia digital de balanço de cores. Com isso em mente, o curta questiona a fotografia não como apenas um sistema de calibração de luz, mas uma técnica de decisões subjetivas. Ser visto com precisão pela câmera e pelas pessoas envolvidas no processo de criação da imagem é a chave para a justiça representacional.
Mudanças começaram a ocorrer com o avanço da popularidade de programas televisivos que contavam com pessoas negras no elenco, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, como o The Oprah Winfrey Show e Um Maluco no Pedaço. Neste contexto, o audiovisual foi pioneiro em relação à abrangência da representação de pessoas racializadas. O curta Travessia pode ser interpretado como não apenas um comentário, mas sim uma extensão da história da representação negra via multimídias, através das fotografias, poemas, imagens e depoimentos.
Estas reflexões culminam no terceiro e último ato, em que pequenos grupos de pessoas e famílias se posicionam frente à câmera, preparando-se para serem retratados por Safira Moreira, que subverte toda uma construção elitista e racista acerca da prática fotográfica. Agora, pessoas negras se fazem visíveis a partir das lentes de uma mulher negra, que simultaneamente, em prática análoga a do autorretrato, também documentou-se, sendo sujeito e agente em seu curta-metragem. Por fim, Travessia traz um vídeo-arquivo, irrestrito, oposto ao arquivo-fotográfico, excludente.
Foto: Divulgação/YouTube