Por Davi Meireles
Nota do escritor: O texto a seguir contém spoilers da narrativa do jogo The Last of Us Part ll.
Contextualização do jogo
The Last of Us Part II é a continuação do game The Last of Us. Ele foi lançado pela Sony em 19 de junho de 2020 e desenvolvido pela Naughty Dog. O jogo é dirigido por Neil Druckmann, que também escreveu seu roteiro com Halley Gross. Ashley Johnson interpreta novamente a protagonista Ellie e Laura Bailey entra no projeto como uma nova personagem, Abby.
Alternando a jogabilidade entre Ellie e Abby, o jogo propõe uma experiência single player para o jogador. Assim como seu antecessor, sua narrativa é em terceira pessoa. Na nova versão, porém, todos os mapas e áreas de exploração são expandidas horizontal e verticalmente, ou seja, é possível explorar subsolos ou escalar estruturas para alcançar altitudes. O jogo é de ação-aventura, sobrevivência e shooter.
The Last of Us Part ll é o jogo mais premiado da história. Ele acumulou 321 prêmios e com uma recepção positiva e notória por parte da crítica especializada. Entretanto, o jogo causou polêmica entre a comunidade de jogadores, que atacaram, discriminatoriamente, a equipe de criação. Eles estariam insatisfeitos com, por exemplo, a sexualidade de uma personagem e a presença de uma personagem trans. Laura Bailey sofreu diversas ameaças por causa de seu papel como Abby. Apesar das dificuldades, Neil Druckmann afirma que ele e toda a equipe do jogo estão muito orgulhosos do produto final.
Como o discurso do jogo é construído
Em diversas entrevistas, Neil Druckmann constata que no primeiro jogo a estrutura narrativa é parecida com a de um filme convencional: ela é linear e dividida em atos. Isso muda em The Last of Us Part ll. A continuação apresenta uma narrativa não-linear separada em capítulos, algo mais parecido com a narrativa de um romance.
Halley Gross relata que um dos maiores desafios de escrever a história foi construir uma relação de empatia entre jogador e personagens, já que a proposta do jogo desafia concepções de “protagonista” e “antagonista”. Esses papéis são embaralhados no desenvolvimento da trama. A obra busca explorar processos introspectivos de personagens afetados por um trauma agressivo que gera um ciclo de ódio, o que complexifica processos de identificação.
A violência gráfica, brutal e visceral presente em toda estética do jogo estabelece horror e repulsa em diversos momentos. O trabalho de pesquisa dos programadores gráficos do jogo é voltado para a representação hiper-realista da brutalidade. Mas essa não é uma estética gratuita. A violência é algo importante na construção no universo fictício de The Last of Us. A proposta do campo diegético é estabelecer um ambiente hostil e perigoso. O jogador precisa se sentir ameaçado.
Pensar em como Neil Druckmann está envolvido nessa característica do jogo é interessante, afinal o assunto principal do enredo é o ciclo de ódio movido pela violência. Grande parte das influências de Neil vem da sua própria vida. Ele nasceu na Cisjordânia em 1978 e viveu lá até 1988. O tribalismo que busca justificar atrocidades era algo diariamente presente na vida do diretor. Em entrevistas, ele declara ter tido contato com vídeos de linchamento e coisas do tipo.
Ellie e Abby orbitando o ciclo de ódio
De certa forma toda a série The Last of Us mantém um tema principal no seu enredo: a nossa relação com nossa própria humanidade e com o Outro.
A segunda parte do jogo se passa cinco anos após os acontecimentos do seu antecessor, no qual conhecemos a história de Ellie. Depois dos episódios retratados no jogo original, Ellie passa a viver na comunidade de Jackson. A garota estava segura, porém nada preenchia o vazio que ela sentiu ao perder o seu propósito de vida de se tornar a cura para a humanidade. Ellie amava Joel, mas sentia que ele tinha mentido. Sua desconfiança a fez investigar sozinha o que havia acontecido no hospital dos Vagalumes. Ao descobrir a mentira, Ellie confronta Joel, que confessa o que aconteceu no hospital. Eles, então, se separam por dois anos. Passado esse tempo, Ellie perdoa seu protetor, que seria morto, no dia seguinte, por Abby. Ellie vê Joel ser torturado e morrer. Traumatizada, a jovem parte em direção a Seattle em busca de vingança.
Para interpretar Ellie, Ashley Johnson estudou o comportamento de pessoas com Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Durante sua jornada, a personagem apresenta um comportamento cada vez mais agressivo. Já acostumada com a violência, Ellie não se constrange ao aniquilar qualquer um que interdite seu caminho. Ela também não se questiona ao envolver as pessoas que mais ama no seu ciclo de ódio: sua namorada, Dina, e seu amigo, Jesse.
Quando mais tempo passa, mais Ellie se mostra capaz de coisas terríveis, às custas da sua saúde física, mental e sentimental. A obsessão da personagem a leva a torturar uma mulher para conseguir informações, assassinar uma mulher grávida e atravessar com brutalidade a vida de outras várias pessoas. Nem mesmo a revelação de que Dina está grávida é suficiente para fazê-la voltar para Jackson.
Abby reage a tudo que aconteceu indo atrás de Ellie. As duas se enfrentam, e é nesse momento que a proposta de The Last of Us Part ll se amplia: o jogo muda a perspectiva do jogador, colocando-o no controle de Abby. Agora, o jogador deve se identificar uma figura que, até então, despertava, nele, apenas o ódio.
Para interpretar Abby, Laura Bailey estudou o comportamento de veteranos de guerra após voltarem para casa de forma a construir seu arco de redenção. Abby mata Joel para se vingar do assassinato de seu pai, o cirurgião do hospital dos Vagalumes. É interessante observar a atuação de Laura Bailey logo após a cena da morte de Joel: a atriz transmite tensão nos seus ombros e confusão na sua feição. Matar Joel não anuviou sua dor: Abby continua tendo pesadelos sobre a morte de seu pai. Toda sua jornada será sobre encontrar um novo objetivo de vida.
Cenas do passado de Abby evidenciam como ela era obcecada por se vingar de Joel. Por causa sua obsessão, ela se afasta de todos: do namorado, de amigos. Na sua busca, ela se junta a uma milícia armada de Seattle. Depois de perceber que matar Joel não havia resolvido seus traumas, ela encontra outro norte para sua vida em duas crianças em perigo, Lev e Yara. Abby assume a responsabilidade de protegê-las e por meio delas consegue resgatar parte de sua humanidade. Abby, portanto, não é uma inimiga; na verdade, ela se mostra uma figura multifacetada, capaz de expressar amor e carinho.
Ellie mata todos amigos de Abby, o que acirra o confronto entre as duas personagens, que se encontram. Porém, no litígio, Abby, sensibilizada, deixa Ellie viver.
No último capítulo do jogo, o jogador volta a controlar Ellie. Ela e Dina tentam viver afastadas de Jackson, em uma fazenda. O filho delas nasce e tudo parece estar em paz, até que Ellie sofre uma alucinação com Joel. Ela o vê agonizando e em sofrimento, o que evidencia que a jovem não está curada. Ellie continua perturbada e traumatizada, o que a leva a retomar seu projeto de vingança.
As duas personagens se reencontram e Ellie ameaça a vida de Lev para forçar Abby a lutar. As duas estão ficam feridas. A batalha é triste e agonizante, tendo como palco as águas de uma praia no meio de um cenário preenchido com névoa e nada mais. A direção de arte indica que o embate é vazio, sem propósito, inútil. Contudo, quando Ellie tenta afogar Abby no mar, ela lembra de Joel, mas não lembra dele ferido. A memória que insurge é de Joel bem, tocando música, o que tornava os personagens tão próximos. Abby lembra que aquilo que nos faz ver beleza na vida vale a pena, que aquilo que nos faz amar vale a pena e que a sua humanidade vale a pena. Ellie também deixa Abby viver.
The Last of Us Part ll nos lembra da beleza da nossa humanidade.