Os caminhos críticos da série Em nome de Deus

Por Tânia Scher.

Foto: Reprodução/Globoplay

Neste artigo, partiremos das reflexões de Paiva e Sodré (2013), sobre cultura crítica, de Soares e Silva (2016), sobre os lugares da crítica, e de Paganotti e Soares (2019), que trabalham o conceito de metacrítica, para traçar uma reflexão inicial sobre série documental Em nome de Deus, da Globoplay. Ela é dividida em seis capítulos de aproximadamente 50 minutos, intitulados respectivamente: Da sombra à luz; Os dias que abalaram Abadiânia; O silêncio é a lei; De João de Deus a John of God; Ascensão e Queda do Império; e A pandemia. A produção narra os acontecimentos que culminaram nas denúncias de abuso sexual e posterior prisão e condenação do médium João de Deus, fundador e principal personalidade da casa Dom Inácio de Loyola em Abadiânia, cidade interiorana do estado de Goiás. A série entrelaça depoimentos das vítimas com imagens de arquivo, produzindo uma narrativa de traços biográficos, atravessada por novas perspectivas de interpretação.

Buscaremos compreender como a crítica é trabalhada na série. O gesto crítico de fato se faz presente, de forma original, ou há apenas uma reiteração de críticas já realizadas em outros circuitos da mídia? Como é pensada essa crítica, conectando o passado midiático do médium e as denúncias apresentadas? Há na produção um trabalho metacrítico? Nosso objetivo é tentar responder, ainda que brevemente, essas questões. Primeiramente, é necessário elucidar nossos aportes conceituais.

Para Paiva e Sodré (2013), a cultura sempre foi uma parte fundante de toda história social (PAIVA; SODRÉ, 2013). Erigindo a maneira como cada indivíduo se relaciona com mundo, a cultura determina nossas percepções coletivas em diferentes contextos. A própria atividade crítica também é atravessada pelas práticas da cultura, historicamente situadas. Contemporaneamente, todos estamos inseridos em uma cultura das mídias, e dela não podemos evadir. Os meios de comunicação apresentam, assim, novos desafios para a crítica social. Para Soares e Silva (2016), a crítica de mídia deveria destacar pontos de vista discordantes e questionar suposições que pretendem alcançar hegemonias (SOARES; SILVA, 2016). A crítica de mídia estaria neste lugar: do questionamento e da ruptura dentro dos meios. Para as pesquisadoras, “caberia à crítica de mídia acionar repertórios constituintes do imaginário social a fim de reiterar ou reverter certos discursos.” (SOARES; SILVA, 2016, p.20).

A crítica promoveria espaços de reflexão sobre os limites culturais de determinados objetos, expandindo nossos entendimentos para além das textualidades ali inerentes. Nesse sentido, Em nome de Deus cumpre uma importante função crítica ao reverberar denúncias e adensar uma ruptura em torno dos sentidos que santificavam a figura de João de Deus. O médium, que antes possuía uma reputação ilibada e, em certa medida, prestigiosa, começou a ser visto a partir de outros enquadramentos tensionadores. Ao reconstruir narrativamente sua biografia, a série faz o esforço de trazer outras perspectivas e chaves de interpretação sobre as ações da personagem, em um esforço de olhar com mais profundidade para as arestas daquela figura. Se, como argumentam Soares e Silva (2016), o lugar da crítica é um espaço de ruptura com narrativas dominantes, podemos encarar Em nome de Deus, em um primeiro momento, como um produto eminentemente crítico.

No exercício crítico, é preciso estabelecer critérios e valores que nos permitam identificar a relação dos realizadores com as obras e como elas circulam socialmente. Esses critérios também devem nos capacitar a averiguar como elas propõem possíveis renovações discursivas, não apenas em termos de conteúdos, mas de formatos (PAGANOTTI; SOARES, 2019). Pensando na complexidade dessas mediações, podemos afirmar que Em nome de Deus vincula-se estreitamente com os debates políticos mais pungentes do nosso tempo, como violência contra a mulher. As discussões presentes na série são tributárias de uma sociedade e de regimes de representação que acolhem denúncias de abusos, ao contrário do que poderia acontecer anos atrás, em um contexto muito mais machista. Para além desses fatores externos, Em nome de Deus apresenta avanços nas conversações públicas sobre o tema em sua própria tessitura narrativa. Como sugerido anteriormente, trata-se de uma produção crítica, “que interfere ativamente na cultura midiática da qual participa” (PAGANOTTI; SOARES, 2019, p.135).

Mas, seguindo Paganotti e Soares (2019), podemos encarar a série como metacrítica. Este conceito complexo “amplia o alcance da crítica, pois não trata apenas das produções midiáticas, mas da crítica feita de dentro delas, ressaltando o caráter relacional e sistêmico das mediações.” (PAGANOTTI; SOARES, 2019, p.135). Através de uma atitude metacrítica, a série almeja fazer “a crítica da mídia e pretende ir além dela, reconhecendo-se como parte de seus mecanismos e dando ao público as ferramentas para que também possa exercitar a crítica de modo sistemático.” (PAGANOTTI; SOARES, 2019, p.142). Ao recuperar as representações midiáticas de João de Deus e propor, em sua própria estrutura, novas formas de enquadrá-lo e de abordar crimes tais quais os cometidos pelo médium, Em nome de Deus afirma-se como uma produção potente e transformativa. Trata-se de um objeto privilegiado para compreendermos como a cultura atravessa a sociedade e a história, e como novos padrões críticos da contemporaneidade moldam narrativas como essa, que não só tratam com mais seriedade denúncias de violência sexual, como podem ressignificar um passado, uma biografia, de forma a vislumbrarmos futuros mais justos.

Tânia Scher é Mestranda do PPGCOM da PUC Minas.

Referências Bibliográficas

PAGANOTTI, Ivan; SOARES, Rosana de Lima. A meta para a crítica da/na mídia em abordagens metacríticas. Matrizes, São Paulo, v. 13, p. 131-153, 2019.

PAIVA, Raquel; SODRÉ, Muniz. Existe cultura crítica na mídia? In: DALMONTE, Edson. Teoria e prática da crítica midiática. Salvador: Edufba, 2013.

SOARES, Rosana; SILVA, Gislene. Lugares da crítica na Cultura Midiática. Comunicação, mídia consumo. São Paulo, V.13, N.37, p.9-28, maio/ago, 2016.

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