Olhares Que Desafiam: bell hooks e a Espectadora Negra (resenha)

Por Marina Marques da Silva.

Foto/Divulgação: bell hooks

Para bell hooks, o olhar tem poder. Usado como aparato de dominação, o olhar tem uma força tal que às pessoas escravizadas foi negado esse gesto. Aos negros que olhassem eram reservados castigos e punições. Entretanto, como ela mesma nos fala, “as tentativas de reprimir o nosso direito, direito de pessoas negras de olhar, produzira em nós um desejo quase irresistível de olhar, um anseio rebelde, um olhar oposicional” (p.484). Esse olhar, na verdade, não é simplesmente um olhar, é um olhar provocador,  contestante que questiona e quer mudanças. bell hooks ancora-se em Michel Foucault para discutir as relações de poder e as estruturas de dominação, mas nos alerta que essa dominação nunca é absoluta: onde há relações de poder, há necessariamente a possibilidade de agenciamento e resistência. O “olhar” foi e é, justamente, um lugar de resistência para o povo negro colonizado ao redor do globo.

A autora também parte de experiências pessoais para relatar que desde os primeiros contatos da população negra dos Estados Unidos com programas de TV foi possível perceber como a mídia de massa era um instrumento dentro de um sistema de poder. Objetivava-se, sobretudo, o remanejamento da estrutura vigente da branquitude supremacista. A população negra, historicamente, sempre foi vista e representada a partir de um olhar branco colonialista, que é violento e traumático para as pessoas negras, principalmente as mulheres.

Em resposta a essa representação deturpada da negritude, desenvolveu-se importantes experiências, como o cinema negro. Entretanto, hooks, em seu recorte voltado para a representação da figura negra e feminina, chama a atenção para o fato de que mesmo esses filmes se preocupando com as questões raciais, eles ainda apresentavam um olhar violento e cruel sobre as mulheres negras, pois não se preocupavam com as questões de gênero. A política falocêntrica deixava o espectador negro (masculino) em uma posição de ambiguidade, pois apesar do racismo vigente (que eles contestavam) ao deixa-se envolver na política patriarcal do espectador, poderiam sentir como se resistissem e se rebelassem contra a supremacia branca. Como não se poderia olhar para a feminilidade branca sem o controle e a punição do homem branco (que poderiam linchar ou até mesmo assassinar um homem negro que olha uma mulher branca), esse olhar reprimido se dava ousadamente ao olhar as telas de cinema. Diz hooks:

Em seu papel como espectadores, esses homens conseguiam entrar num espaço imaginativo de poder falocêntrico que mediava a negação racial. Essa relação gendrada com o ato de olhar fez a experiência dos homens negros espectadores ser radicalmente diferente da experiência das mulheres negras espectadoras. (p.485).

Apesar de algumas mulheres negras também terem se deixado seduzir e envolver-se pelos filmes hollywoodianos, era necessário que abdicassem das críticas ao sexismo e ao racismo, fazendo com que essa espectatorialidade fosse radicalmente diferente da espectatorialidade masculina negra. As que não se deixavam seduzir conseguiram enxergar a forma como eram representadas a partir desse olhar sexista em filmes independentes negros, que reproduziam o olhar que os homens brancos tinham sobre as mulheres brancas: sexualmente estereotipadas e como objetos.

Assim, com a rejeição do olhar que se tinha sobre elas, mulheres negras engendram uma espectatorialidade calçada em um olhar opositivo, de não identificação na forma como elas eram representadas nas telas de cinema. E por muito tempo a reação dessas mulheres foi a de um prolongado silêncio sobre como se viam em frente as telas. Mesmo entre as críticas cinematográficas feministas, não havia espaço para as mulheres negras, pois essas críticas feministas eram feitas por mulheres brancas, intelectuais que muitas vezes pertenciam a uma elite e não reconheciam que as questões de gênero e sexualidade não era o único ou principal problema dos meios fílmicos, o que acarretava o apagamento da mulher negra. Para hooks:

Apesar das intervenções da crítica feminista visando à desconstrução da categoria ‘mulher’, que destacam a significância da raça, muitas críticas cinematográficas feministas continuam a estruturar seu discurso como se falassem sobre ‘mulheres’, quando, na verdade, falam somente sobre mulheres brancas. (…) Não há nenhum reconhecimento da diferença racial.(p.496).

Apesar do apagamento, da violência e crueldade que levaram a não identificação das mulheres negras pela forma como foram retratadas sob o olhar falocêntrico e racista, elas conseguiram criar mecanismos de resistência. Elas ousaram olhar e construir uma identidade a partir desse embate. O olhar adquire o prazer através do questionamento desafiador e da desconstrução de olhares intrusos sobre o que é a feminilidade negra: “A condição de espectadoras críticas das mulheres negras como local de resistência se dá apenas quando essas mulheres, individualmente, resistem à imposição das formas dominantes do olhar e do saber” (p.504).

A ocupação nos papéis de produção cinematográfica, como direção, roteiro, arte, fotografia etc., nos mostra que as mulheres negras fazem mais do que apenas reagir. Ao se tornarem mais acessíveis, os meios de produção e de circulação de discursos fílmicos  tornaram-se ferramentas de suma importância para que se começasse a discutir mais sobre as mulheres negras como realizadoras e espectadoras. O cinema passou a ser encarado como dispositivo importante para a intervenção crítica e política, do qual a mulher negra deve utilizar-se para promover o seu próprio saber, sem se dobrar aos conhecimentos dominantes. Elas desafiam espectatorialidades embranquecidas e pouco acostumadas com mulheres negras protagonizando narrativas, em diversas instâncias. O texto O Olhar Opositivo: A espectadora Negra de bell hooks vem pra reforçar a importância da representatividade nas constituições de novos sujeitos e identidades, além da importância de se ter uma crítica interseccional.

Referencias:

O OLHAR opositivo – a espectadora negra, por bell hooks. [S. l.], 26 maio 2017. Disponível em: https://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/. Acesso em: 7 abr. 2022.

BELL hooks e o seu olhar oposicional: o cinema e a intervenção crítica necessária das mulheres negras. Https://arteaberta.com/, 15 dez. 2021. Disponível em: https://arteaberta.com/bell-hooks/. Acesso em: 17 mar. 2022.

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